Crônica

É uma era de tempo-sem-tempo

Por Tito Damazo | 06/04/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Entraram. A mulher vestida para o que viera. A criança soltou-se da mão que a conduzira até ali e aboletou-se logo na primeira poltrona à mão. Mal acabara esse gesto cobrou: “vó, me dá meu celular”. A mulher foi até uma estante em que acomodou seus pertences e tornou, entregando ao neto o celular.

Ela entregou-se aos exercícios sob as orientações do treinador. A criança mergulhara-se no celular sem dele emergir durante os suados cinquenta minutos despendidos por sua avó de um a outros aparelhos absolutamente nada cômodos como o do neto.

Ali estampada, pequenina cena do tempo daquela criança, em que mal começara a viver e em que aquela avó, por certo assustada e surpresa, ia sobrevivendo. Um tempo-sem-tempo que seu neto já, já vivenciaria na plenitude.

Um tempo em que ela, com seus sustos e surpresas, procurava se enquadrar de forma a não fazer feio. Lamentos, saudosismos comparativos seriam atrapalhações tanto a ela quanto aos outros. Tinha-os, impossível mentir a si mesma. Entretanto, deveriam ficar encerrados na caixa óssea de seu cérebro. E lidar com eles tão somente consigo mesma.

Afinal, daquele tempo da geração de seu neto, vivenciavam, o que era de certo modo um privilégio, os de sua geração que viveram o seu tempo-com-tempo. Agora ia atravessando esse tempo-sem-tempo, que era deles, mas que também era um pouco dos de sua geração sobreviventes. Entenda-se, o privilégio consistia em terem podido viver os dois tempos, ponto. Sem propósito de valoração. O que, bem sabia, inevitavelmente impossível não fazer. Todavia, se tivesse que o fazer, haveria de ser observando os elementos positivos e negativos de cada um. Uma comparação analítica mesmo, a mais objetiva possível, quase sem apurar contabilisticamente os débitos e créditos de cada qual, que seriam, não há que ver, extensos.

Ela, criança, como o neto, esperando pela mãe ou outrem (aos quais “personal trainer” inexistia), que realizavam outras coisas absolutamente diferente daquela (que ela também nunca pensara que faria). Era impossível ficar sentadinha esperando (somente um pouco mais tarde, quando ia descobrindo a leitura, assumia postura semelhante; entretanto, sabe-se que o livro produz efeitos muito diferentes aos produzidos por um celular).

Era uma espera, a dela lá na sua infância, preenchida por muito movimento. Físico e mental. Um espaço qualquer, por pequeno que fosse, podia tornar-se um faz de conta que era uma sala de visita em que a senhora anfitriã do faz de conta recebia uma cara amiga para tomarem um chá-mate com torradas, enquanto jogavam conversa fora.

Se a demora da mãe, lá para aonde foram, se estendesse por longo tempo, a senhora anfitriã e a visita do faz de conta, a convite daquela, sairiam, após o saboroso chá-mate com pitadinhas de limão, para o belo, vistoso e prazeroso jardim da casa a passeio. Transitariam radiantes e satisfeitas, a rir descontraidamente em consequência da conversação descompromissada. A dona daquele faustoso lar ia apontando à visita amiga os muitos canteiros repletos de várias espécies de flor, os quais iam ladeados de variadas árvores frutíferas. Um primor aquele jardim-pomar. Impecavelmente cuidado. Ia-se ficando com a sensação de que apanhar quaisquer flores, colher quaisquer frutas seria macular aquela réplica do éden.

Essa rememoração, sem medo de recriar nesse instante de recordação é pequenina ilustração de como era aquele tempo-com-tempo que sua geração pôde viver. Havia as brincadeiras coletivas – tantas! Em tudo, muita movimentação, trocas de ideias em discussões. O jogo da amarelinha. A “salva”. O jogo de bétia (de “bets”?). E lá se vão outros tantos...

Sessão de exercícios terminada, o neto continuava nem piscando. Talvez houvesse se esquecido de onde exatamente estava. Chamou: “vamos!” “O quê?... ah!... já acabou?! (Quando a mãe também a chamava para se irem, ela, mergulhada assim, a brincar com os amigos imaginários em reinos encantados, ou a ler “Narizinho Arrebitado”, ou “O Sítio do Picapau Amarelo”, ou “O Pequeno Príncipe”, talvez reagisse de modo semelhante.

Dia desses levou um susto maior. Leu que “IAs”estão a escrever resumos de obras, redações aos estudantes etc. E mesmo põem-se a escrever poemas, “ficção”! Gelou: e se essa inteligência virtual se autonomiza?Drummond poetou dizendo que não seria o poeta de um mundo caduco. Ela rezava para que não fosse avó, nem tataravó de uma geração cujos criadores acabassem à mercê de suas criaturas.


Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

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