CRÔNICA

Um Hugo para sempre

'Hugo era um jabuti-piranga que livremente se conduzia pelos quatro cantos e estabelecera vários lugares do quintal para sua estada.' Leia a crônica de Tito Damazo.

Por Tito Damazo | 10/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min
especial para a Folha da Região

Em verdade, a nova dominação é do capitalismo internético, internauta, cujo “fundamentalismo de mercado”, filho caro ao neoliberalismo, vem lhe conferindo a ambicionada condição de ser o novo grande rico da vez. O que não possa se converter em “criptomoeda” lhes é dispensável, desprezível. Quando muito, a tática do bom senso recomenda, emitir uma dose de “sente-se muito”. Seus caros valores estabelecidos, para a exitosa condição de ser um novo e insaciável “donatário” neste mundo, não concebem e mesmo ignoram as “anonimidades”. O anonimato se reserva às subalternidades, às desimportâncias. Angariar, galgar tais valores prescritos são demandas para o sucesso. Felicidade implica atingir o sucesso. Sucesso implica muita riqueza.Essa, a sua gramática.

Porém, os que temos vivido pulando miúdo (sem ilusões de graudagem) para sobreviver em meio a esse desvario de disputa pela hegemonia do poder bilionésimo, cremos que a vida verdadeira é, tem de ser, o avesso disso tudo. Daí que, anonimizados, subalternizados, ainda assim vamos escavando saídas, cuja perseverança teimosa vá expondo, anunciando que aquilo tudo é um grande e degenerescente, e deliberada construção de destruições.

Por isso, atenho-me aqui, agora, a um pequenino caso recente (a par de inumeráveis outros tantos que com outros tantos se dão) de miudagem que nos tem, a mim e aos meus, fortalecido nesta “guerra surda” de que somos cônscios combatentes. Desço, então, um grande véu sobre as torpezas humanas infindas e inomináveis, ora escancaradas pelos genocídios putin-netanyahus-hamas, para, a meu modo, dar “gracias a la vida” que nos tem dado tanto.

A morte acabou de nos retirar um muito querido “amuleto”. 70 anos em nosso meio. Por 40 pelo menos, viveu, até o fim da semana passada, em nosso largo perímetro residencial. Hugo era um jabuti-piranga que livremente se conduzia pelos quatro cantos e estabelecera vários lugares do quintal para sua estada. Incluam-se entre eles, uma das casas de cachorros praticamente esquecidas pelos seus “supostos” ocupantes atuais e uma das grandes bacias de uso na lida com roupas pela sua senhora dona do lar. As bacias são postas perpendicularmente empinadas entre a parede e o chão da lavanderia. Quando queria, entrava no desvão e roçava a borda côncava até que a bacia caísse de borco encobrindo-o. Ali ficava, às vezes, alguns dias. Satisfeito, arrastava a vasilha até nalgum objeto que a detivesse. Forçando, fazia-a ir se erguendo, liberando-lhe a saída. Um perito nisso. Uma travessura repetitiva inesquecível: sua senhora dona tem por hábito deixar no chão da cozinha a melancia nova até o momento de usá-la. Súbito, alguém se deparava com Hugo comendo-a, estando a fruta com grande rombo pelas mordeduras do esperto quelônio.

Há dois anos, Hugo apresentou-se um dia raspando a ponta traseira do casco e claudicava uma das patas de trás.Conduzido ao hospital da Faculdade Veterinária, ganhou grande atenção das peritas especialistas em animais de sua classe. Exames mil. Radiografias. Acupuntura. Remédios e suplementos alimentares. Dir-se-ia mesmo, tratar-se de um paciente paparicado. Semanas, nesses cuidados médicos privilegiados. Ficara ótimo.

Entrou, pois, na rotina doméstica. Patas completamente restabelecidas para que, por sua vez, restabelecesse o hábito de retalhar, com sua sã andança, os 600 metros quadrados de sua residência.                  

Vegetariano cheio de quereres. Verduras, vegetais e frutas variados. Todavia, tinha suas predileções. Dessem-lhe o que fosse de seus alimentos preferidos, todavia, se dentre eles figurassem flores de hibisco, não comeria outro, enquanto houvessem estas. Em não as havendo, a escolha primeira recaía na vagem de metro, que sua dona infalivelmente lhe comprava. Outro alimento que igualmente assim o arrebatava, a folha de ora-pro-nóbis. E mais lhe favorecia ainda a paparicação de todos os familiares (e não são poucos). Em especial, no entanto, a da sua dona senhora da casa. Sabia-lhe ela as suas muitas manhas e artimanhas e com elas lidava muito bem.

Segunda-feira passada, não nos demos fé da ausência dele. Durante o dia se ouvira um grito, ou um canto estranho ao cotidiano do quintal. Nada de detectar pássaro ou bicho diferente qualquer. À noite, de novo o estrídulo estranho. Pássaro estava descartado. Assim, terça-feira. Intrigante. Manhã de quarta-feira, ao pé do jasmineiro, o estrídulo. Surpresa atroz. Era Hugo. Pescoço esticado pra fora. Cabeça erguendo-se ao alto, boca aberta buscando ar, e o grito tremendo. Por mais que fizeram as veterinárias, na sexta, expirou.

Hugo viu passar e serem enterrados mais de dezena de cães no cemitério deles no quintal, onde agora, com eles, jaz em paz. Chamei-o amuleto por essa longevidade vivíssima aqui entre nós. E amuleto continua. Agora, em um só lugar para sempre, posto de tal modo que lhe permita abranger a casa em toda a sua dimensão.

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

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