CRÔNICA

Reflexões de uma escrivaninha de gabinete-biblioteca

Por Tito Damazo | 25/02/2024 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para a Folha da Região

Escrivaninha das antigas. Madeira maciça. Objeto de considerações comuns entre marceneiros que por ali aparecem para lidar com ela ou com algum outro móvel da casa: “essa é de madeira de lei. Acabou. Não se encontra mais”. Em satisfação dissimulada   esboça um sorriso de endosso. No entanto, acomete-a sempre, nestas ocasiões, a vaga e incômoda reflexão de quantas árvores de lei foram ceifadas para que se tornasse mesa de escrivaninha. Era de segunda mão e em péssimas condições, situação em que igualmente se encontrava o seu proprietário, o que permitiu ao atual (e tudo indica que definitivo, pois, há muito, têm uma relação afetiva e intimista muito boa) obtê-la por um preço bem acessível.

Restaurada, há décadas ali está na ativa função de se servir a um gabinete (escritório?!) de trabalho de professor(a), circundada de estantes de livros, revistas, jornais, enciclopédias etc. Presenciou e presencia, solidamente centrada no cômodo, sustentando sobre si aqueles petrechos todos (livros, dicionários, jornais, blocos de anotações, porta-lápis/canetas etc.; notebook, e “intrusos” circunstanciais e momentâneos – uma legião de diversos que, de algum modo, porém, se inter-relacionam). Petrechos cuja ordem teima em se manter, mas que o automatismo mecânico do uso sempre a contraria e o caos resultante por algum tempo reina, até que a resiliência daquela a restabelece. Todavia, o caos não é mero acaso.

É que o fazer cotidiano em
 uso, desuso, reuso desses objetos e ferramentas de suporte imprescindíveis para o desenvolvimento das atividades daí a pouco, de novo, torna sua superfície, no dizer da senhora dona da casa, uma bagunça. É o caos restabelecido em sua plenitude. Percebe invadi-la, a dona, uma comichão de imediatamente por ordem naquilo tudo. Todavia, se arrefece ante o argumento do efetivo usuário, segundo o qual ele é quem deverá retornar as coisas ao seu devido lugar, uma vez que sabe onde fica e deve ficar cada uma, do contrário, ao recorrer novamente a elas, não as encontrará sem demora. Mas, para a incontida paciência dela, tal medida perdura dias e dias a ser tomada. E o que diz ser ainda pior, vai inflando o agravamento do “mal”.

É
 que novos afazeres demandam recursos a eles afeitos. E vêm à escrivaninha imiscuindo-se aos que, agora em desuso, ali continuam, vez que não desocuparam espaço. E a montoeira, no dizer da dona senhora da casa, vai engordando o caos, até o cara perceber que não dá mais para atuar com aquele estado de escrivaninha apinhada de livros empilhados. Quanto a ela, fica na sua. Na condição de ser escrivaninha. E a tudo assiste.

Sua situação centralizada privilegia-a de ter um domínio de visão inteiro. Visão trezentos e sessenta graus. À frente, dentro, duas estantes simetricamente contrapostas entre si, entre as quais se intercala a ampla porta
 de vidro de entrada, conectando o gabinete à varanda-garagem. Atrás, a mais extensa e antiga estante ocupando toda a parede. Na lateral direita três outras estantes tamanho-padrão unidas, assim, também tomando toda a parede. Na lateral esquerda, estante pequena e antiga e a cômoda em que se acomoda, com todos os seus congêneres devidos para funcionamento, onde de nunca saiu, o primeiro computador da casa, a velha e ainda vivaCPU. Embora mais nova ali do que este, pôde presenciar várias produções de muito valor à casa nele executadas. Na parede, grande janela de vidro que descortina o quintal em sua plena dimensão com seu pomar hospedeiro de pássaros.

Pois bem. Tornando à ordem e ao caos, contraditórios de convivência complacente apascentada pelo ocupante-mor daquele gabinete.
 Como não parece mais se constituírem as escrivaninhas de hoje (talvez até esta palavra que as define não seja mais devida), compõe-se de seis gavetas, de bom fundo, largura e comprimento. Cabem nelas bastante coisas. Como se sabe, gavetas guardam objetos, constantemente usados uns, outros já rarissimamente usados e vários outros, usados ainda, todavia muito pouco.

No seu caso, nas de uso raríssimo, três delas, o caos é absoluto. Abrem-se somente para irem se avolumando de 
desusos ainda não descartáveis. Das três outras, duas, porque ativas, sofrem do mesmo “mal” por que passa a sua superfície. Uma outra foi especializada para portar objetos múltiplos que contivessem uma fundamental característica: capaz de seduzir, de ser desejada por criança. Denominou-se a gaveta deles. Eles são especificamente os netos. Tudo considerado com aquelas características ia para a gaveta deles. Quando vinham de passeio ou de férias, mal queriam saber de outra coisa que não fosse conferir a gaveta.

Ela foi a gaveta de duas gerações. Entretanto, uma já surfa em plena juventude.
 A outra, em início de adolescência. A gaveta tornou-se um túmulo. Já se vinha falando em tornar os objetos reciclagem. Deu-se, todavia, que a contingência anunciou o advento de uma bisneta. A ideia foi suspensa, está em modo de espera. Enquanto isso, a gaveta mantém-se completamente engavetada. 

 

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

 

 

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