CRÔNICA

Num ponto de ônibus em Mariana

29/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Tão perto, não podia deixar de conhecê-la. Tão histórica quanto sua vizinha, hoje, a atração maior. A Minas primeva: Vila Real do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo; ao se constituir cidade, recebe, na pia batismal, o nome de Mariana. 

 

Sabe bem (quem não o soube e não dividira – a sua maneira – as dores ante a devassa daquela tragédia erigida pela Vale do Rio Doce em novembro de 2015?), e carrega consigo, como tantos, do horror que há pouco a degradadora gula do capitalismo perverso lhe impusera. 

Mas queria conferir um pouco (bem pouco) a singela beleza de sua face resultante dos feitos primórdios, certo é que também consequentes de ações e medidas não menos devastadoras. Conhecer um pouco a Mariana/Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo tão presente em poemas de Cláudio Manuel da Costa, dos quais, constantes do livro “Obras”, o lírico-narrativo “Fábula de Ribeirão do Carmo”; de “Sonetos”, cujo “II” se inicia com este quarteto: “Leia a posteridade, ó pátrio Rio, / Em meus versos teu nome celebrado, / Porque vejas uma hora despertado / O sono vil do esquecimento frio:” Ver a Mariana de Alphonsus de Guimaraens; tal, o propósito maior de ir até lá.

Por visita última, para melhor saborear, fora à Rua Direita conhecer o “Museu Casa 
Alphonsus de Guimaraens”, onde vivera e morrera o “Solitário de Mariana”. Deu errado. Desde a semana anterior, havia se fechado para reformas. Dada a desolação, restava retornar.

Num ponto de ônibus em Mariana para retorno a Ouro Preto.
 Um cachorro posto em sossego rente à sarjeta que limita a rua com a guarita de espera, onde pessoas ocupam os bancos, e pessoas, não os tendo, mantêm-se de pé, aguardando o transporte coletivo do seu destino.

O cachorro, decerto, bem conhece a rotina, pois que
 estendidamente entregue a sono tranquilo, assegurado pela indiferença das gentes. Fluxo de densa rotatividade.Ressona visivelmente a olhos que ao menos o resvalem. É grande e bem desgastado pela dura vida de rua.

Melhor reparando, notara, sentado no meio-fio,
 rente ao cachorro, um homem,meia-idade, vestimenta comum esurrada; chinelo de dedo. Gesticulava falando consigo mesmo. Logo certificou-se, no entanto, de que falava para o cachorro e, vez em quando, passava a mão ao longo do dorso do animal, alternando com pegar numa das patas traseiras puxando-a. Ao primeiro gesto, o cão aceitava-o, mantendo-se em seu sossego. Ao segundo, incomodado, reagia, voltando a cabeça, resmungando reação incompleta contra o importuno. Tornava à mesma posição. O cara, de novo. De novo reagia o cão. Assim.

Após reagir seguidamente
 às repetitivas amolações, o cachorro, não sem esforço, levantou-se e foi se deitar metros adiante. O homem, a cabeça levemente oscilando, durante um breve tempo, manteve-se ali. Olhava circunvagando, mas terminava em direção ao cachorro.Então levantou-se, foi se escarrapachar outra vez junto ao cão, reiniciando-se, desse modo, cena semelhante à anterior.

Ele que tudo acompanhava inteiramente centrado naquilo, tão inquietado quanto o cão, não se contendo, foi se postar muito próximo de ambos. Algo lhe dizia que o cara precisava ser interceptado.
 Aquilo claramente figurava maus-tratos, e perante generalizada indiferença. Puxou conversa com um rapaz, bem ao lado, a respeito. O outro olhou uns instantes e sentenciou que o sujeito estava embriagado. Parecia mesmo. Mas o cachorro não tinha nenhuma culpa disso. Concordou e indagou, em tom admoestador, do importuno a razão daquele procedimento. Não via que o cachorro queria paz? O cara engrolou respostas desconexas das quais se entendera que o cachorro estava doente, precisava de remédio. O rapaz, pondo-se franca e ativamente (exatamente o que ele queria muito já ter feito, mas continuava temeroso em fazê-lo)em defesa do cachorro, insistiu em saber se o mesmo lhe pertencia. O importuno (sem dúvida, estava mesmo bêbado) tornou a resmungar desconexões. O outro, sem mais dizer, tocou o cachorro dali e, se voltando ao importuno, determinou que não fosse atrás. Se estivesse doente, deveria pelo menos poder morrer em paz.

O bêbado não se mexeu, não disse nada.
 A cabeça levemente oscilando com um olhar mortiço e circundante a divagar. Súbito, esforçou-se em fixar um ônibus que acabara de estacionar. Levantou-se bamboleando, ao que os dois defensores do cachorro esboçaram a intenção deampará-lo. O importunador se arreou, braços esticados como a dizer não me toquem. Equilibrando-se o quanto podia, cambaleou até o ônibus, em que entrou aos trambolhões. 

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

 

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