CRÔNICA

Ab ovo

02/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Os versos iniciais de “Logística da Composição” de Paulo Henriques Britto afirmam que “Só o sonho é inevitável. Quanto ao resto, / há sempre a possibilidade aberta/ de fazer outro gesto, dizer uma /palavra que é o contrário de si mesma.”

Admitindo, pois, a postulação do poema – não evitável somente o sonho –, cabe   então fazer outro gesto, restabelecendo a dúvida que carregamos conosco como se o estigma da condição humana: seremos tragicómicos por todo o sempre? Logo, será o sonho inevitável, contudo também o impossível da utopia, que, tal qual aquele estigma, haveremos de carregar do nascedouro à morte, quando então tudo cessa, restando ainda a memória igualmente em trânsito de perecimento para que, por fim,definitivamente, o absoluto nada?

Talvez, caídos do carrossel do universo neste planeta Terra, homossapiensados portando uma consciência que percebe, problematiza, indaga e questiona, nos tornamos este peregrino que, desde então, vagueia em busca de si mesmo, de seu onde, do como, do quando, do porquê, do para quê. Sua geratriz motora decerto é o gene do contraditório de natureza terráquea congênito, ou adquirido. Contraditório que parece advir da turbilhonante condição de ser do universo, um cosmo caótico, ou um caos cósmico, cuja existência, quanto mais se entende, mais apavorante, todavia também mais encantadora.

Posto o quadro desta forma, se pode admitir que aqui apequenadinhos como vida humana vamos movidos pelo motor razão/emoção gerador de tudo quanto vimos sendo temos sido, iremos sendo. Daí, decerto, essa patologia sonho-delírio-utopia, realidade-devaneio-distopia.

Ao que parece, ante o que vai sendo, ficando e se desfazendo como decorrência dos procedimentos e atos tornando-se acontecimentos, cujas consequências implicam a própria condição humana, a vida neste planeta deu-se numa erupção, fez-se ente e a terra foi habitando; foi intervindo; foi evoluindo. Compulsiva necessidade de ser.

Todavia, portando uma consciência que põe a pensar e inquieta, daí a intricada, multíplice e multifacetada mistura de razão, emoção, sensações, sentimentos, tudo, fatalmente, gerando medos, tormentos, indagações, dúvidas, inconformismos, conquanto também permeiem-nos situações de contentamento, prazeres, alegrias, desejos, esperanças e crenças. Ou seja, o contraditório como “a máquina do mundo”.

O agrupamento resultando em coletivos múltiplos e diversos por certo gera confiança e coragem de ir adiante estabelecendo o presente tornando passado à medida que busca o futuro, uma projeção escudada no hipotético, o utópico aventado como um possível, entretanto conduzido pela incerteza. O vir a ser, que, verdadeiramente, vai refazendo a roda-viva presente-passado-futuro, é o indefinido, o incerto e, atesta a firmada experienciação, o lugar nenhum, mais precisamente, o ter de recomeçar de novo.

É a sina. Dir-se-á que se vai peregrinando em frente na esteira desse atavismo, carregando o maxilar dos pesados pesares e desencontros (quase esquecidos dos encontros) traçados pelo contraditório. Daí que as mesmas mãos que afagam acutilam; as mesmas bocas que beijam escarram; palavras que edificam e desmoronam (“ai palavras, ai, palavras, /que estranha potência /a vossa! Todo o sentido da vida/ principia à vossa porta; (...) sois o sonho e sois a audácia/ calúnia, fúria, derrota...”); paixão que arrebata, ódio que devasta; riqueza que refestela, pobreza, miséria que degeneram.

Eis o homo sapiens! De era em era. De geração em geração. Semelhantes, mas inigualáveis. Amorosos e amantes, mas também violentos e violadores. Dadivosos, mas também possessivos, insaciáveis. Fiéis e traidores. Inventividade inesgotável, inércia endêmica.

Procriam, mas também assassinam. Brás Cubas encerra sua narrativa afirmando: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. ”

Potador de tormentas, mas também de esperanças. O eu lírico de “A flor e a náusea” encerra o poema afirmando: “Uma flor nasceu na rua! (...) Sua cor não se percebe. / Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. (...) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
 

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

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