CRÔNICA

Mas ele viu os cachorros

17/12/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Cidade de que o extraordinário poema bilaquiano traça um percurso de quando Vila Rica que se vai transformando em Ouro Preto. Aquela jaz no leito de sua história em que se perpetua. Está petrificada com seus muitos ícones. A poderosa Igreja, braço direito de reinado e impérios, figura-se em seus templos suntuosos. Erigidos com rígidas e brutas pedras extraídas por negros braços escravizados. Conduzidas pelas forças, não menos sacrificadas que às daqueles, dos burros, cavalos e bois.

No seio delas, a resplandecência
de seu esplendor em ouro estampado nos altares, nos tetos, nos nichos da galeria de muitos santos e santas ungidos pela adoração das diversas, heterogêneas e imiscuídas figuras de anjos. Tudo sugestionando uma dinamicidade voluptuosa de curvas e arabescos barrocos. Tudo revelando o ardoroso trabalho de artistas, com relevância aos não menos reverenciados e ungidos Aleijadinho e Mestre Ataíde.

Durante toda sua estada vigiou
 com esmero o vaguear das nuvens sob a luz da imensidão solar. Havia de constatar o pôr do sol por detrás da vultosa serra a se observar do largo da igreja de Nossa Senhora do Carmo. Uma visão deslumbrante. Entre ambas, a igreja e a serra, o vale fundo, abismal. Ali se dá o espetáculo: “O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;/ Sangram, em laivos de ouro, as minas que a ambição/ Na torturada entranha abriu da terra nobre:/ E cada cicatriz brilha como um brasão.”Talvez tenha sido exatamente ali o cenário indutor desta maravilha poemática. Se não ali, nalgum lugar de muitas imilaridade. Todavia, até o fim, impediram-no as malévolas nuvens ouro-pretanasdaqueles dias de obter a tão buscada graça.


Entretanto, se não obtivera o acalentado ocaso, o acaso o presenteara com algo que sequer, nalgum momento cogitara a respeito, não obstante seu visceral amor por eles. Uma singularidade que só mesmo a contingência acaba proporcionando. Tratava-se da assídua presença de cachorros, rigorosamente, no largo, ou na porta ou mesmo dentro de cada uma das várias igrejas que fora conhecer. Não só. Também em restaurantes, cafés, sorveterias.


Cães grandes, com os quais se deparava por onde ia.Igrejas são espaços obrigatórios de se visitar em Ouro Preto. Os resquícios áureos de Vila Rica reverberam no seu interior. Nalgumas bem mais veemente. Altares, santos e santas, anjos engastados em meandros. Pilastras recurvas. Objetos sacros. Do ouro a manchei a arrancado das entranhas de penhascos. E nelas, gente e mais gente. Turistas (como ele), a perscrutá-las. A fotografarem incansavelmente. A indagarem. A ouvirem guias prolixos.

Certamente, haverá explicações várias
 para isso, mas o fato é que, coincidência ou não, em nenhuma, nenhuma! das principais e concorridas igrejas que visitara, havia a ausência deles. Sempre um cachorro de grande porte posto em sossego.

Em todas! Lá estava um cão tamanho grande, com frequência, estendido em sono puro e bom de cachorro confiante em subentendido e disseminado respeito protetivo. No largo, à porta da igreja, de tal modo que os visitantes se desviam para não perturbarem. Se não aí e assim, assenta-se em descanso nalgum canto da mureta, da parede, onde tranquilo, sem incômodo, fica a observar o que vai por tudo.  Ou ainda, calmamente vagueia em meio às pessoas, cheirando coisas, agradecendo a afagos, festinhas (com ou sem petiscos), gestos comuns de deslumbrados turistas que também gostam de cachorros.Ele, um dos.


Um episódio que, com indefinido sentimento de ironia, assistiu. Fora com a mulher à missa na concorrida igreja de São Francisco de Assis. Magnífica. Projeto de Aleijadinho. Pinturas de Mestre Ataíde. Chegaram cedo. Meia dúzia de pessoas, se tanto. Tempo para revisitar eocupar lugar privilegiado. Conversavam com o administrador do templo, que lhes abasteciam de mais informações, quando, de súbito, surgiu não soube bem de onde. Todo lampeiro, semeando desbragados agrados, compostos de lambidas, rebolados e rabeados. Imediatamente, o administrador interveio, dizendo-lhe que tinha de cair fora; não podia, sobretudo agora, estar ali. Mas ele, a mulher e o pequeno cão de pelos densos, negros e luzentes já estavam em pleno diálogo. E mais gente chegando e se integrando àquele gesto. Todos empenhados naquela afetuosa interação.


O administrador, talvez surpreso e inibido, pôs-se,como quem se juntava ao interacionamento, a falar com gracejos, mas insistindo que o grácil cachorrinho (sim!,aquele era pequeno) precisava se retirar. As pessoas foram se recompondo, e o homem pôs-se suave, mas firmemente, a enxotá-lo. O cachorro, porém, driblava-o bravamente pelos muitos meandros de bancos então repletos de gente.


As movimentações dos preparativos à cerimônia na nave central, onde ressaltava-se resplendente o altar-mor, eram chamativas. Não mais se via o administrador discretamente enxotando o cãozinho. O início da missa era iminente. De repente surdiu altíssona música de órgão de tubo. Os participantes se ergueram, virando-se defronte ao corredor entre as fileiras de bancos. Nele vinha solene cortejo de auxiliares, conduzindo os instrumentos para a celebração, enquanto no altar, altivo, contrito, o celebrante os aguardava.


Atrás do cortejo caminhava, silente, o cãozinho. Sem administrador nem ninguém em seu encalço. Aboletou-se num canto do primeiro degrau que leva ao altar e ali ficou, intocável durante – e depois – todo o tempo da missa.


Ele olhou para a mulher, esboçou um sorriso de ironia e satisfação e sussurrou-lhe: São Francisco deu o troco ao burocrático administrador de sua igreja.

 

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

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