CRÔNICA

Os peixinhos são

'Peixe à toa! Sem tréguas, dando carreirões no outro indefeso. Por que não reage? O medo alimenta valentões.' Leia a crônica de Tito Damazo

Por Tito Damazo | 02/12/2023 | Tempo de leitura: 4 min
especial para a Folha da Região

É preciso fazer alguma coisa. Peixe à toa! Sem tréguas, dando carreirões no outro indefeso. Por que não reage? O medo alimenta valentões. Quanto mais corre, se esconde, mais o prepotente cai-lhe em cima. Em troca de quê? Não dá em cima dos demais. Somente daquele infeliz. Não se consegue perceber o que lhe possa ter feito, ou faz o outro, que não faz senão correr, fugir, se esconder em meio às poucas pedras e plantas.

É olhar para o aquário, o que faz regularmente nas três ocasiões comuns para as devidas alimentações, e ver aquele trogloditazinho aporrinhando a paz do temente conviva. E como não se arma de coragem a confrontar, recorre ao que pode para se livrar das possíveis mordidas do déspota. E pode quase nada. Trata-se de um aquário caseiro, retangular, de prováveis quatro palmos de comprimento por três de altura. Portanto, limitadíssimo espaço às fugas, ficando a palmo de distância do agressor, fugindo para o mesmo lugar. Os quatro outros mantêm-se nadando com descarada indiferença às sevícias praticadas pelo valentão.

Indigna-o aquilo. Tinham de intervir! Se não só, a dois, a três e decretar um basta àquele terrorismo. Mas não. Vão e vêm, sobem e descem as águas plácidas e asseadas periodicamente pela dona da casa. Importam-se somente com cardumizarem-se à flor d’água, quando percebem (e são exímios nisso) que ela está procedendo o ritual de alimentá-los. Aí a obsessão generalizada é por abocanhar o quanto podem os alimentos que, flutuando, vão se dispersando pelo aquário, à medida que cumprem a lei da gravidade indo ao chão do fundo. Ao menos nessa situação, a fome sobrepõe-se à violência, e o brutamontes se esquece do padecente, que, então, consegue abocanhar um pouco de comida. Um olho no perseguidor, outro nas rações flutuantes, engolindo o quanto pode.

Trégua também parece obter, enquanto acoitado pelas pedras pespegadas aos caules daquelas plantas aquáticas, cujas folhas emaranhadas muito contribuem para a formação de pequeninos enclaves nos quais se entranha o flagelado.

Em mais de uma ocasião tem se manifestado à mesa, convidando para que vejam a covarde perseguição do energúmeno ao encalce do fugitivo. Os comentários gerais são meras evasivas. Que eles lá se entendem. Que isso é próprio da natureza dos peixes. Que há muito isso ocorre e estão todos vivos. Etc. Discordam igualmente de que o carrasco deva ser removido do aquário. Uma justificativa que abafa este tipo de medida é que se trata justamente do peixinho predileto da neta. Quando ela vier para as férias, como explicar a ausência? Ora, dizendo a verdade! Ela há de também se solidarizar com a coibição daquele flagelo. Todavia, a situação se mantém. Talvez consiga convencê-la diante do fato. Isso se até lá o pior já não tiver acontecido. Embora a casa não creia.

Isso tudo o pôs a ficar matutando que aquário, peixinhos de aquário entraram bem depois no dia a dia deles. Os cachorros sempre. Já desde o início da longa história conjugal os cachorros estavam juntos. Certamente, mescla de meio-ambiente com DNA. Não se lembra de estágios de sua vida sem cachorro. Aquários, todavia, deviam os filhos já frequentar escola.

Enquanto isso, perdura o martírio. Talvez um piscicultor explique essa truculência que muito incomoda um dos responsáveis por aquele aquário com seus peixinhos aprisionados para arejar o olhar cansado, distraído, circunvagante de seus proprietários. Para satisfazer os caprichos, a volubilidade de uma neta, quando, em alguns dias do ano, põe-se, relampagamente, a olhá-los e a apontar coisas a serem reparadas no aquário, ou solicitar outros peixinhos de cores tais. O que, para a avó, se configura obrigação a ser cumprida sem muita demora. E quase sempre, vai até à loja com a exigente às compras de novos peixinhos.

Não tem clareza, mas aquele truculento deve ter sido indicação dela. Também não poderia ela imaginar que nos sairia um peixe famigerado desse a apavorar no estreito espaço daquela gaiola de vidro um conviva. Eram sete. Um outro da mesma espécie do atormentado morrera. Daí não saber precisar se ambos apanhavam. Verruma-o, por sua vez, insistente pensamento que, por mais o arrede, dele não tem se livrado. É o de que o agressor e outros quatro são dourados com riscas vermelhas. O agredido e o que já não existe, cor preto-prata. Recusa-se a admitir que haja tal preconceito entre bichos. Procura se aquietar com a pressuposição de que se trate da truculência de um invejoso. Não porta a prata que está no outro. Queria ser todo ouro-prata, e aquele preto que se sujasse de vermelho.

“Os peixinhos são/ Flores sem o chão/ Nadam, boiam, fazem bolhas/ E bolinhas de sabão/ Como lindos são/ Coloridos tão/ Espirrando gotas/ Como notas na canção” cantam os Tribalistas. A canção é bela, sensível, interpretação singela, comovente.

Vistos de passagem, como quem vai de visita a aquários, a canção aviva assim a memória de quem os viu. Todavia, o dia a dia do aquário da sua casa atesta: bem mais que isso os peixinhos são.

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

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