CRÔNICA

Estas mulheres

18/11/2023 | Tempo de leitura: 4 min

 Dona Gracinha vendia verdura em carroça puxada a burro. Burro bonito.  Visivelmente bem tratado. Atarracada. Sotaque preservado. Riso escrachado. Misto de deboche e de confiança em si mesma. Ali descobrira o milagre de terra dadivosa, prenhe de água e ainda avizinhada de imensos rios. Era um espécime de leva nordestina que imigrara para aquele socavão de mundo no rabo do Estado paulista.

A empresa colonizadora a serviço do governo loteou o lugar, do que resultaram inúmeras pequenas propriedades. A terra era boa. Em se plantando, a colheita era certa. Pequenas propriedades de agricultores familiares foram brotando. Tudo ficava bem distante. Vias de acesso péssimas. O dinheiro, curto. Inacessíveis, pois, implementos modernos. O cabo de enxada e a mão de obra de casa é que continuavam a lavrar a terra. Quando generosa, a safra encorajava adquirir um arado traçado animal, rezando para que safras mais permitissem investir num tratorzinho.

Não havia ricos ali (um ou dois fazendeiros...). A pobreza escasseava na conta dos que se obrigavam a empregos raros naqueles sítios de família. Ou braçais uma das fazendas. Fome era substantivo impróprio, abstrato. Sempre se conseguia a capina, a limpeza de um quintal, de uma data, de onde saía o querosene das lamparinas, os miúdos no açougue do Pedro, a cachaça na venda do Sebastião Vermelho. Possível ainda plantar mandioca e abóbora num pedaço de terra qualquer, dos muitos relegados ao capim e à guanxuma, reservas da colonizadora. E uma vara qualquer para pesca, simples tarrafa, e mesmo peneiras, que os imensos rios, ou lagoas eram peixes bons.

Dona Gracinha, o negócio dela era hortaliças. Típica contradição do clichê atribuído a nordestino. Se efetivamente não se importasse com verdura em sua mesa, tinha-a, no entanto, na conta de seu cultivo principal ao de viver da família. De encher os olhos, a cultura da sergipana. Tinha um tudo, que se referisse a verduras e legumes. Horta a se perder de vista. Um sortimento pai d’égua, sô! Só vendo.

E o que ia e se via a escolher na carroça com várias caixas-compartimento, uma comprovação. Sua horta, sua roça. E ainda um pomarzinho de onde colhia abacate, jabuticaba, manga, pinha, com que mais presenteava a assídua clientela, do que os vendia. A venda se restringia aos avulsos compradores. Né mesmo pra venda não! É pro gasto só. Quando é tempo, é muito. Trago de gratidão pras freguesa. A pois, si a pessoa só que isso, então vendo!

Eram três, os filhos. Rapagões solteiros, taludos e muito risonhos feito a mãe. Seis braços possantes somados aos dela. Corria que, com eles, empregava ela grande parte de seu tempo à labuta em sua roça. Moços de fácil amizade, de frequentar rodas de papo em bares, bebendo cerveja, discutindo diversidades de assuntos comuns destas ocasiões. O futebol, o mais constante. Os três integravam a equipe do povoado. Dois deles compunham o denominado time aspirante. O outro, a reserva do time titular. Em quase todos os jogos, substituía um parceiro. Eram saudáveis, alegres e cordatos.

Dona Gracinha era pura risada e fala. Falava e ria. Ria alto. Ria por nada. Ria por tudo. Uma mulher de dar duro no reduto de suas rendas. E ria de um jeito... Todo o mundo gostava de sua risada. Não parecia o riso estrategista de vendedora. Via-se a pureza de quem vende certa de que a honesta qualidade de seus produtos se vendia por si mesma. Decerto ria por rir. Ria, decerto,porque a vida assim a conduzia. Ria, de certo, porque era assim que conduzia a vida. Era graça em corpo e alma. Dona Maria Jesuína da Graça.

Dona Mariquinha também tinha sua horta. Horta extensa. Produção variada. Não era roceira, dona de pedaço de terra com o qual se interacionava para ganhar a vida. Não, a horta era uma terapia, um trabalho de que gostava muito, com o qual se esquecia do duro e pesado – “lavar e passar roupa para fora”, de madrugada à noite. Este lhe permitia dar o de comer à família. Família cujos membros também participavam, direta e indiretamente deste ritual. O neto mais velho, por exemplo, menino de calças curtas, aluno do grupo escolar da cidade, entregava a roupa pronta e trazia a roupa suja da freguesia da avó. Gente cujos filhos eram seus amigos de escola, das peladas de rua, dos banhos no Rio Lambari. E mais. Por vezes dona Mariquinha convencia o neto a entregar verduras a determinados clientes também compradores deste seu serviço. Além de ter de catar bosta de cavalo para esterco da horta. Ela não permitia que pudesse ser boi, ou de vaca. 

Era impossível isso não lhe acometer a lembrança – sem saudosismo, nem rancor – ante a despachada, simpática e singular verdureira dona Gracinha. Sergipana que, por certo, quando menina, comeu raiz, calango assado para matar a fome. Tão singular quanto dona Mariquinha, a lavadeira e passadeira, que tomava um litro de pinga por dia. E lavava, e passava, e quando a cachaça lhe subia à cabeça, rodava pra valer a baiana.

 

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poetamembro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

 

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