ARTIGO

Lança-perfume

Falta Educação. Falta conhecimento. Falta saber aplicar o conhecimento. Falta senso crítico. Leia o artigo de Ayne Regina Gonçalves Salviano.

Por Ayne Regina Gonçalves Salviano | 10/09/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para a Folha da Região

Fui prestigiar o desfile de 7 de setembro, dia em que se comemora oficialmente a independência do Brasil de Portugal, resguardadas aqui todas as ressalvas históricas que já sabemos sobre essa data.

Cheguei na esquina das duas praças centrais da cidade a tempo de ouvir uma homenagem da fanfarra local para a cantora Rita Lee, que faleceu esse ano, vítima de um câncer nos pulmões.

Nos primeiros acordes já identifiquei a música: “Lança-Perfume”. Minha primeira reação foi de espanto. Eu me perguntava mentalmente enquanto acompanhava a execução: “Como uma música que fala sobre uma droga ilegal está sendo tocada diante do palanque das autoridades entre elas os representantes do Exército e das forças policiais locais?”.

Para uma semioticista treinada em análise do discurso, a manhã definitivamente começava desafiadora, principalmente porque me parecia que ninguém mais percebia a falta de lógica. Nada contra a artista. Nada contra os músicos. Mas a data e a música definitivamente não combinavam.

O lança-perfume, popularmente conhecido também como “loló”, é um spray a base de cloreto de etila taxado como droga recreativa e proibido no Brasil desde 1961 pelo decreto No. 51.211.

No passado, ele foi usado principalmente em épocas de carnaval, dentro dos salões de baile ou mesmo ao ar livre, mas devido aos riscos de saúde associados ao seu uso, foi e continua sendo proibido.

Enquanto olhava a fanfarra, as autoridades, os policiais, as famílias e as muitas crianças no local, eu pensava: como uma música que, de certa forma, faz propaganda de uma droga ilegal, “que tem cheiro de coisa maluca”, sugere que as pessoas “desbaratinem” e fala sobre sexo (“ficar de quatro no ato”) estava sendo executada diante da tradicional família brasileira?

Imagino que quem a escolheu teve as suas razões. Ela é uma das músicas mais famosas da cantora e, por isso, contagiaria mais o público.

Ela também pode ter sido escolhida porque tem acordes mais fáceis de tocar e isso facilitaria para os músicos.

Além disso, quem a escolheu pode ter pensado no fato de muitas pessoas não saberem mais que lança-perfume é uma droga proibida porque é mais antiga e não se ouve falar muito.

O fato é que voltei para casa decepcionada. Depois de um ano, quando um então presidente da República puxou um coro nacional com a palavra “imbrochável” no discurso da celebração dos 100 anos da independência, esse ano ainda não comemorei a independência do Brasil como eu gostaria, de forma respeitosa, como esse país merece.

Falta Educação. Falta conhecimento. Falta saber aplicar o conhecimento. Falta senso crítico. Só não falta esperança de que um dia tudo isso vai mudar.

E para quem ainda não entendeu esse artigo até agora, vou desenhar. O texto não é uma crítica à Rita Lee. Ela merece todas as honras e glórias.

Também não é um texto sobre drogas. Se um dia escrever sobre elas, começarei comentando sobre as lícitas, como álcool e cigarro, para depois chegar nas ilícitas e então abordar assuntos do momento como a descriminalização da maconha, em pauta agora no Supremo Tribunal Federal.

Esse é apenas um texto sobre lógica, ou a falta dela.

Ayne Regina Gonçalves Salviano é jornalista, mestre em Semiótica, com especialização em análise do discurso.

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