ARTIGO

Jornalistas não são Deus

14/08/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Existe uma piada no meio jornalístico que diz o seguinte: “médicos pensam que são Deus. Jornalistas têm certeza”. Lembrei-me dela recentemente ao assistir a cobertura da queda de um pequeno avião na divisa dos estados de Mato Grosso e Rondônia. O acidente matou pai e filho de uma família tradicional de Araçatuba que pertence à elite brasileira.

Houve grande repercussão do acidente na mídia nacional até com chamada de abertura no principal telejornal do país, o Jornal Nacional. Mas a maior parte da cobertura jornalística Brasil afora aconteceu de uma forma deprimente, antiética, com inverdades, manipulação de suposições e hipóteses que levaram o público a um pré-julgamento que, de certa forma, culpabilizava as vítimas.

Vamos ao fato: o avião caiu no final da tarde de um sábado, dia 29 de julho. Os destroços e as vítimas foram encontrados no domingo, dia 30. Polícia e técnicos de aviação ainda precisam analisar as causas. Não há relatórios oficiais sobre o caso. Não há gravação de quem esteve no local do resgate com qualquer informação relacionada ao que foi mostrado na cobertura.

A cobertura: os veículos de comunicação usaram imagens de redes sociais onde o adolescente de 11 anos que morreu pilotava uma aeronave ao lado do pai. No vídeo, o adulto, como passageiro, aparece tomando uma cerveja comemorando o aprendizado do filho. As imagens são anteriores ao acidente, não estão relacionadas diretamente ao fato, pelo menos até o momento da coberta. Ou seja, a imprensa especulou.

Nem é preciso ser semioticista para entender o tipo de manipulação dessa cobertura estampada nos principais veículos de comunicação do país. Não há (ainda) imagens nem relatórios que indiquem a causa do acidente, mas com o sensacionalismo ofertado ao público, houve a indução para julgamentos. Jornalismo não é isso.

Jornalismo é a busca da verdade pela apuração criteriosa dos fatos. Criteriosa. Para ser jornalista é preciso ter ética, princípios. E toda notícia é composta por respostas a cinco questões básicas, objetivas e diretas: quem, fez o que, como, quand0, onde e porquê. Sem margem para “achismos”. O que a cobertura da maioria da mídia fez não se encaixa nisso.

Na verdade, o que foi apresentado foi o não-jornalismo, o antijornalismo. Expor imagens não relacionadas diretamente ao acidente, além de não ajudar na informação, desrespeitou uma mulher, mãe e avó, que não teve tempo ainda de se recuperar do luto pela morte do marido vitimado por um câncer; uma outra mulher, mãe; e uma terceira mulher, esposa. Essa última também faleceu no dia do sepultamento do marido após atentar contra a própria vida. Uma tragédia.

E para os veículos de comunicação que já tinham errado na cobertura da queda do avião, houve um segundo equívoco primário em jornalismo. Por uma série de motivos já estudados por especialistas, a mídia não faz a cobertura de suicídios, a não ser em caso especiais. E ainda nessas situações, precisa tomar o cuidado de não dar detalhes, principalmente de como o ato foi cometido, para não despertar gatilhos em pessoas com pensamentos suicidas. De novo, a maioria dos veículos fez sensacionalismo em vez de jornalismo.

Minha vergonha alheia desses jornalistas mais o meu pragmatismo geram a seguinte pergunta: o que a imprensa ganha com esse tipo de cobertura? Do meu humilde ponto de vista de ex-professora na graduação do jornalismo inclusive da disciplina de Ética é apenas o desrespeito da parte pensante da população.

Em casos como esse, o veículo de comunicação que deveria ser sério fica igualado aos milhares de site de pseudonotícias ou perfis sensacionalistas das redes sociais feitas por não “profissionais” (bem entre aspas mesmo) que só querem audiência e “likes” para caça-níqueis. Jornalistas de verdade não podem errar assim, nem às vezes.

Ayne Regina Gonçalves Salviano é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica. Trabalha com gestão educacional.

Fale com a Folha da Região! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção? Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Araçatuba e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.