ARTIGO

Eu também fui tapeceiro...

Por Jeremias Alves Pereira Filho | 19/06/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Faz muito tempo, no tempo em que era um garoto qualquer do interior, mais precisamente da própria Araçatuba. Qual moleque escolar nunca participou da festa de Corpus Christi que levante a mão! Pois é, ninguém – ou quase – se manifestou, porque antes mesmo da data de 08 de junho, sagrada pelo Papa Urbano IV, em 1264, todas as escolas locais já se encontravam empenhadas na preparação da grande festa. Pouco ou nada importando se a instituição era cristã, protestante, pagã ou laica, tanto fazia. Era o bastante para o envolvimento no festejo que comprometia a cidade inteira, na significativa reprodução da caminhada dos peregrinos à Terra Prometida, alimentados pelo corpo de Cristo.

O trajeto básico da procissão, se bem me recordo, partia da Igreja Matriz de Nossa Senhora Aparecida, tornava à esquerda na rua Carlos Gomes, passava defronte a Capela do Colégio das Freiras, cuja patronesse era – e é – a mesma Santa; seguia firme adiante, em curva suave na frente do saudoso IE Manoel Bento da Cruz, para quebrar em ângulo reto à esquerda na Cussy de Almeida, que fluía longamente até a Luiz Pereira Barreto, contornada à esquerda para caminhar gloriosamente exausta até o encontro necessário na Matriz, da qual partiu, em cujo ponto o Bispo, o Padre ou quem fizesse as “honras da casa”, dava por encerrado o cotejo.

Não era a única, faço questão de registrar, pois fiéis e infiéis das paróquias de São João e de São Joaquim, já desenvolvidas e quase autônomas, também patrocinavam suas próprias procissões por trajetos exclusivos nos seus respectivos bairros. Me restringi à descrição da principal procissão da cidade pelo acaso de nela ter figurado como “tecelão”. Funcionava assim: além dos inatos participantes, cada paróquia abria espaço e inscrições para qualquer um distinto de credo, sexo, cor, riqueza ou pobreza, que desejasse integrar o seleto grupo que iria desenhar nas ruas imagens religiosas previamente escolhidas.

E em seguida cobri-las com folhas, flores e pó de serra coloridos, montando majestoso tapete vivo, que logo seria pisoteado pelos caminhantes e quem mais democraticamente quisesse acompanhar. Não havia restrição alguma! Os fiscais da procissão – somente paroquianos – cuidavam da ordem e “timing” do desfile, tal como um hoje faria um coordenador de escola de samba, sem querer ofender uma ou outra, ambas relevantes. Atualmente, fiquei sabendo, o religioso mosaico é montado com moldes pré-fabricados e aplicação de pó de calcário colorido... Bom para turista ver e tirar selfie!

Mas lá fui eu, moleque meio incrédulo, ocasionalmente temente a qualquer divindade, cuidar da “minha” procissão. Vai saber o que poderia acontecer ao menino “pecador”... Melhor acovardar(existe?) do que pagar temível penitência. Até “matava aula” para cumprir a tarefa de aplicar pó de serra vermelho ou amarelo nos espaços que me apontavam. Só depois do serviço geral feito e acabado é que podia me maravilhar com aquela obra prima coletiva, sentindo uma certa felicidade por ter sido um dos anônimos tapeceiros de Cristo.

Sócio de Jeremias Alves Pereira Filho Advogados Associados; Especialista em Direito Empresarial e Professor Emérito da UPM-Universidade Presbiteriana Mackenzie.  Araçatubense nato.

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