
A figura ideal do governante verdadeiramente cristão foi teorizada no Medievo europeu. Jacques Le Goff escreveu um estudo muito elucidativo a esse respeito, intitulado “O Retrato do rei ideal”. O processo de aperfeiçoamento do monarca ideal, “que não se contenta em concentrar em sua pessoa todos os poderes, mas deve concentrar também todas as virtudes”, foi uma ideia constante na Idade Média e culminou com a elaboração de numerosas obras teóricas destinadas à formação dos príncipes.
Os Espelhos dos Príncipes - em latim, Specula Principum - foram um gênero literário e pedagógico muito frequente ao longo de toda a Idade Média. A designação de espelho foi adotada no século XII, mas numerosas obras do gênero já vinham sendo elaboradas desde o século VI até o início do século XVI, quando deixaram de ser produzidos porque entrou em voga outro modelo de Príncipe, o modelo renascentista e neo-paganizado de Maquiavel.
Note-se que a metáfora do espelho não deve ser entendida em sentido contrário, ou seja, não é o espelho que reflete passivamente a realidade da pessoa que está diante dele, mas é essa pessoa que se torna passiva diante do espelho; é a pessoa do príncipe que deve procurar reproduzir, à maneira de um espelho, o ideal contido no modelo proposto.
Santo Isidoro de Sevilha, um dos homens mais eruditos e sábios de seu tempo (sécs. VI-VII), explica, nas Etimologias, que a origem da palavra REI está ligada à retidão, à virtude. Etimologicamente, são cognatos o substantivo REX (rei), o verbo REGERE (reger ou reinar) e o advérbio RECTE (retamente). O rei é quem rege e rege retamente. O rei que não rege não é verdadeiro rei. E o rei que não rege retamente, não é um bom rei; em outras palavras, não é rei no sentido pleno. Na própria etimologia da palavra REI está, pois, contido um elemento moralizante e ético.
Não basta ao rei, salienta Le Goff resumindo o pensamento de Isidoro, possuir todo o poder, ele deverá também possuir e ser exemplo de todas as virtudes para seu povo. Em outros termos, não basta ao rei ter herdado ou conquistado uma coroa, ele somente legitimará plenamente seu poder se for virtuoso e colocar sua virtude ao serviço do seu povo. Entenda-se o conceito de virtude num sentido muito amplo, não se restringindo à prática das virtudes religiosas, mas abarcando também o conjunto dos valores e práticas humanas e governativas, resumidas nas quatro virtudes cardeais: justiça, fortaleza, prudência e temperança.
Nessa ótica, embora o poder do rei medieval fosse, teoricamente, absoluto - já que em sua pessoa se reunia o pleno exercício das funções governativas que mais tarde Montesquieu dividiria em executivas, legislativas e judiciárias - na prática ele estava subordinado a uma ordenação moral superior que a todos, reis e vassalos, obrigava. Tal subordinação constituía o mais grave dos deveres do rei e, ao mesmo tempo, lhe proporcionava o seu caráter sagrado. A ideia de um monarca de plenos poderes na sua esfera temporal, mas sempre sujeito a uma ordenação moral superior que obrigava aos reis e aos súditos, porque provinda da vontade de Deus, soberano e supremo Senhor de tudo, estava presente nos Specula.
A mais antiga obra de que se tem notícia, nessa linha, é a de São Martinho de Braga (c.510-c.580), que entre os anos 570 e 580 estabeleceu, na Formula Vitae Honestae, dedicada a Miro, rei dos Suevos, qual devia ser o modelo de monarca cristão. Essa obra ainda não tinha o nome de Speculum nem usava a metáfora do espelho, mas pelo seu conteúdo pode ser considerada como iniciadora ou precursora desse gênero literário.
Mesmo depois do século XIII, numerosos outros Specula continuaram a ser compostos por autores eclesiásticos ou civis. Desde o primeiro até o último desses espelhos, ao longo de toda a Idade Média, mais de mil obras foram compostas na Cristandade, quase todas em latim, umas poucas em vernáculo, sobre os deveres morais dos reis e príncipes, com a finalidade de formar os governantes de acordo com os modelos desejáveis.
Tão eficaz foi essa pedagogia que até os maus reis eram obrigados a tomar, como referencial de conduta, os Specula. Curiosamente, até mesmo muçulmanos chegaram a imitar o modelo, de modo que compuseram algumas obras do gênero, para formação de seus emires ou califas.
Armando Alexandre dos Santos é doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Piracicabana de Letras e do IHGP.