ARTIGO

Paulo Rónai em sérias dificuldades...

Por Armando Alexandre dos Santos | 12/02/2024 | Tempo de leitura: 4 min

Voltamos a Budapeste, no ano de 1937, quando o jovem Paulo Rónai se esforçava por aprender, à distância e sem professor, a língua portuguesa. De início, tudo lhe pareceu demasiadamente fácil, claro e sem obscuridades. Foi só ao aprofundar os estudos que as leves inclinações de terreno se revelaram serras escarpadas, que uma gramática aparentemente simples se complicou com numerosas exceções e tudo ficou difícil. Mas aí ele já estava apaixonado por nossa língua, e nada mais poderia impedir o romance e o verdadeiro casamento com ela, que realmente ocorreu.

As dificuldades eram numerosas. A letra x, por exemplo, correspondente a quatro ou cinco sons diferentes, era algo que não conseguia entender. Simplesmente inexistia, no húngaro, tal letra misteriosa. O excesso de vogais, que para nós, luso-brasileiros, é tão natural, era algo que o chocava. Sentia falta daquelas palavras para nós estranhas, com dez ou doze consoantes e apenas duas vogais perdidas pelo meio, como no húngaro ou nos idiomas eslavos. Procurava, mentalmente, explicar-se como a palavra lua pode ter vindo do latim luna, como pessoa pode provir de persona, como vetera pode ter confluído na nossa velha. Os sons anasalados do idioma português também constituíam barreira aparentemente intransponível para seus ouvidos e suas cordas vocais.

Os gêneros eram outro problema. Por que criança era palavra feminina, se designa indistintamente meninos e meninas? Qual a razão lógica dessa opção? Também a naturalidade com que nossa língua incorpora vocábulos de origem árabe, como por exemplo alfaiate, o surpreendia. Não seria mais normal que um alfaiate costurasse túnicas ou albornozes mouriscos, deixando para algum profissional que usasse uma designação mais próxima do sartor (costureiro, em latim), o corte de casacas e calças europeias?

Já palavras feias para nós, brasileiros, como horrendo e nefando, para Rónai sorriam amigavelmente e pareciam simpáticas, porque fiéis às suas raízes latinas. Também o infinitivo pessoal - que normalmente causa muita dificuldade aos estrangeiros que aprendem nossa língua - lhe pareceu familiar, porque o húngaro tem a rara peculiaridade de possuí-los, como nós.

Camões, que para nós apresenta dificuldades, curiosamente foi fácil para Rónai, porque auxiliado por uma boa tradução húngara e, sobretudo, porque conhecia bem Virgílio e Torquato Tasso, estando ainda familiarizado com a mitologia grega.

Pôs-se, a certa altura, a traduzir para o húngaro, poesias brasileiras. E então os problemas ficaram ainda mais aflitivos, porque os brasileirismos não constavam do dicionário Português-Alemão, nem de um velho dicionário Português-Francês que, àquela altura, já tinha conseguido. O resultado é que o mesmo Rónai que lia sem dificuldade Os Lusíadas, penava para decifrar, e muitas vezes não conseguia, poetas como Vicente de Carvalho e Mário de Andrade.

Certa vez teve que traduzir para o húngaro a palavra dezembro, dentro de um poema. Em magiar, a palavra equivalente, de mesma raiz (december) evoca, de imediato, ideia de frio intenso, gelo, fome e miséria. Nada mais estranho à ideia que, no poema brasileiro, esse vocábulo queria significar, aludindo a um escaldante Natal carioca. Como traduzir sem trair a forma ou o fundo do poema?

Outro exemplo: como traduzir “morros cariocas” ou “gente do morro”? Morros, qualquer dicionário explicava, eram elevações de terreno, colinas, outeiros. Até aí, tudo bem. Cariocas, também ficava claro, era a designação dada aos habitantes do Rio de Janeiro. Mas o que queria dizer o poeta com aquela reiterada referência aos morros cariocas? Só depois de muito penar é que o tradutor conseguiu compreender a conotação sociológica e econômica da expressão. “Gente do morro” era a gente pobre, favelada, sem eira nem beira. Como ele poderia adivinhar isso, se em Budapeste as famílias mais ricas moravam nos morros, ficando as regiões mais baixas da cidade reservadas para os menos endinheirados?

As poesias brasileiras, traduzidas por Rónai, foram publicadas no final de agosto de 1939, num volume sob o título “Mensagens do Brasil”. Durante três dias, o audaz e pioneiro tradutor gozou dos louros de seu feito, celebrado e bem acolhido pela crítica. No quarto dia, porém, tinha início a Segunda Guerra Mundial, com a invasão da Polônia pelas tropas nazistas, apoiadas pelos russos, com os quais Hitler acabava de firmar tratado de amizade e cooperação, o famoso tratado Ribentrop-Molotov.

Seguiram-se quinze meses de sofrimento e aflições, que pareciam ter sepultado, para todo o sempre, o hospitaleiro, mas distante Brasil, com sua hermética poesia cheia de mistérios. Mas, afinal, Rónai conseguiu escapar com vida. Chegando a Portugal, uma decepção: entendia tudo o que lia, sem problemas, mas não entendia absolutamente nada do que ouvia.  Ele, que julgava já conhecer o idioma português razoavelmente, deu-se conta de que sua prosódia lhe era completamente desconhecida! O sistema luso de “comer” as vogais subtônicas na pronúncia deixou-o sem referenciais. Começou a duvidar do idioma português que julgava já conhecer.

Embarcou, então, para o Brasil. Quando desembarcou, no Rio de Janeiro, desde o primeiro momento estava entendendo tudo o que todos falavam. Era o português do Brasil, com todas as suas vogais bem pronuncias, e não o de Portugal, que ele, sem jamais ter ouvido som algum, aprendera nas suas incursões linguísticas realizadas, autodidaticamente, em Budapeste!

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