ARTIGO

O velho do Restelo e a nação dividida

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 4 min

Uma passagem bem conhecida do poema “Os Lusíadas” é a do Velho do Restelo, um ancião “de aspeito venerando / que ficava na praia entre a gente” e “três vezes a cabeça meneando / que nós no mar ouvimos claramente / com um saber só de experiências feito / tais palavras tirou do esperto peito”.

Na fala desse velho do Restelo (Canto IV, Estâncias 94 a 104), personagem sombrio e enigmático que assistiu à partida da frota de Vasco da Gama fazendo sombrios augúrios para o futuro, Camões soube exprimir com genialidade os sentimentos da parcela da nação lusa que não estava de acordo com as Navegações, nelas vendo apenas “... vã cobiça / Desta vaidade a que chamamos Fama”, “sagaz consumidora conhecida / De fazendas, de reinos e de impérios”. “Chamam-te Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana. / A que novos desastres determinas / De levar estes Reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas, / Debaixo dalgum nome preminente? / Que promessas de reinos e de minas / De ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? Que histórias? / Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?” E, depois de lembrar que o inimigo ismaelita estava tão próximo, no norte da África, censura à Fama a imprudência de lançar Portugal oceano afora: “Deixas criar às portas o inimigo, / Por ires buscar outro de tão longe, / Por quem se despovoe o Reino antigo, / Se enfraqueça e se vá deitando a longe! / Buscas o incerto e incógnito perigo / Por que a fama te exalte e te lisonje / Chamando-te senhor, com larga cópia, / Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!”

A longa fala do ancião - que, paradoxalmente, falava da praia de Belém, bem defronte do Mosteiro dos Jerônimos, da Torre de Belém e do atual monumento evocativo dos descobrimentos - é uma crítica cerrada à aventura das navegações, que ele considera imprudente e pouco assisada. É um discurso extenso, concatenado e coerente, constituindo, no poema, o contraponto de toda a epopeia, a negação de todo o heroísmo cantado e decantado ao longo dos dez cantos do poema.

Qual o sentido desse contraponto, tão destoante de todo o resto?

Segundo alguns camonistas, a fala do Velho do Restelo poderia constituir a clave para a interpretação de todo o poema. De fato, não fica inteiramente claro para que lado propendia o próprio Camões: seria para o ideal dos navegadores, que ele cantou com todo o ardor no seu poema? ou seria para a voz do securitarismo e do senso comum (é de propósito que não falo em bom senso, já que em português são bem distintos os conceitos de senso comum e de bom senso...).

Em última análise, seria o velho do Restelo um alter ego de Camões, que pôs em sua boca o mais recôndito de seu pensamento, ou pelo menos o mais inconfessado dos seus temores? Ou seria uma figura caricata, que o próprio Camões quis deixar registrada para ser rejeitada e escarnecida pelos seus leitores? Esse é um mistério que somente Camões poderia nos esclarecer... É um dos inúmeros mistérios da História que somente no dia do Juízo Universal poderemos ver decifrado.

Certa vez, o Chanceler Otto von Bismark, do Reich alemão, declarou que sentia, dentro de sua cabeça, todo um parlamento. Às vezes, explicou, era um radical que tomava conta dele; outras vezes, era um conservador ou um moderado que tomava a dianteira e falava por sua boca. E ele vivia se equilibrando, ao sabor das tendências mais variadas, que iam se sucedendo no seu dia-a-dia e exercendo no seu espírito o papel de vetores que influenciavam e determinavam sua conduta.

O recurso à imagem dos vetores, para explicar o fenômeno, foi utilizado pelo medievalista português Humberto Baquero Moreno quando, falando da primeira metade do século XIV português num congresso internacional sobre as navegações lusas, ele mostrou como, nos conselhos reais, as opiniões se digladiavam, opondo-se os que se manifestavam simpáticos à expansão ultramarina e os que propendiam a evitá-la, preferindo, pelo contrário, fortificar e desenvolver mais o próprio reino. O curioso é que alguns membros do Conselho Real que, numa sessão, por vezes defendiam uma das posições, em outra ocasião defendiam parecer diametralmente oposto. Como explicar essas contradições? Baquero Moreno assim as explica: “A expansão portuguesa não teve um sentido unidirecional. São muitas as linhas de força e as correntes de opinião que se digladiam entre si. (...) No arranque da expansão temos a nação dividida num projeto que representa contradições e até algumas hesitações por parte dos seus mentores. Tal não obstou, porém, a que a nação fosse adquirindo uma consciência coletiva que paulatinamente se consubstanciou num esforço comum a todos os portugueses, apesar de o mesmo ter resultado de avanços e recuos nem sempre fáceis de ultrapassar. Lentamente, porém, assistiu-se a uma convergência de esforços entre todas as classes e grupos sociais no sentido da plasmação desta ingente realização do conjunto dos portugueses. (MORENO, Humberto Baquero. “Os vectores da expansão portuguesa no período quatrocentista”. In Conferência Internacional Os Portugueses e o Mundo, vol. II – História, Filosofia e Direito. Lisboa, 1985, Fund. Eng. António de Almeida, p. 116-119).

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