Cultura

No Palco com Lélia Abramo: o testemunho de um belo ocorrido em 1990

Por Alexandre Mate |
| Tempo de leitura: 3 min
Andréia Barros
Andréia Barros

Tudo parece ter acontecido em uma noite de intensa tempestade na cidade de São Paulo. Sim, segundo o relato da atriz Andreia Barros: muito Lélia Abramo, em 1990. Parece, de acordo com o mergulho de pesquisa desenvolvido e reconfigurado esteticamente com assessoria dramatúrgica de Adélia Nicolete, que o local da ação aconteceu no apartamento de Lélia Abramo significada por Andreia Barros. Aquele apartamento que eu conheci, repleto de muitas plantas, situado em um dos edifícios da Rua Avanhandava. Sim, antes de prosseguir, Avanhandava, que vem do tupi, junta/une: abá, correspondente a humano + nhan, cujo significado relaciona-se a correr + aba, designando lugar... Que lindeza de nome... a junção faz menção a uma cachoeira que obrigava a toda gente que vinham de barco a descer, carregar a embarcação nas costas e seguir à pé! Então, algo muito próximo do belo, lírico, pungente e forte espetáculo No Palco com Lélia Abramo ocorre: avanhademo-nos, pois!!


Lélia Abramo, assim como tantas outras mulheres e homens das artes, por sua conduta ético-artístico e política, insere-se na condição de artista essencial. Oficialmente, como atriz, estreou no histórico e importantíssimo espaço do Teatro de Arena da cidade de São Paulo, na antológica Eles Não Usam Black-tie (1958), escrita por Gianfrancesco Guarnieri. Mulher-artista, deixou um legado nas artes (teatro, cinema e televisão) e na defesa intransigente nas lutas libertárias e militantes (à esquerda) de seu tempo. Sua militância política levou-a a ser preterida em muitas obras, mas, e até o fim da vida, não se acomodou e continuou em processos permanentes de enfrentamento às mais distintas formas de barbárie. Fundamentada, sobretudo, no livro Vida e Arte – Memória de Lélia Abramo (1997), Adélia Nicolete conseguiu, por meio de uma bem urdida situação dramática, tecida por teatralidade e narratividade, trazer à toma momentos da vida pessoal, política e teatral da dupla Lélia Abramo e Andreia Barros (ou como me referi no debate ocorrido após a apresentação da obra na 35 edição do Festival Nacional de Teatro do Vale do Ribeira – Festivale: Lélia Barros e/ou Andreia Abramo).


Retomando a alusão à avanhandava, sim, a obra promove uma interrupção nos tantos fluxos de um viver (que se imagina sabido, conhecido, controlado...) e guia-nos metafórica e metonímicamente a uma viagem: em barco?, barcarola?, batel? sensível? por entre as incontáveis camadas da linguagem estético-representacional ao encontro de um ser exemplar e semelhante, desconhecida da totalidade das gentes de agora. Viagem senvível de uma atriz que se manifestou, a Andreia Barros, em 2015, por meio de um livro de memórias... Viagem espetacular, repleta de encantamentos... Viagem por entre os caminhos da memória. Viagem de ressuscitamento!


Antonio Januzelli (Janô) é um diretor de intérpretes. Suas direções (a maioria monólogos), potencializam e fazem medrar as tantas e inumeráveis expressividades do sujeito da cena. Por intermédio da materialidade concreta de um só corpo, ungidas pelas “mãos de afeto” do trabalho de direção de Janô, assiste-se ao nascimento pleno de uma atriz imbricada à sua personagem.


Durante o debate, porque de fato é o que sinto, e de modo mais espirituoso, pontifiquei: “É isso que pode acontecer com alguém que leva a sério seu trabalho por mais de trinta anos?!” Andreia Barros encontra-se plena em cena! Narrando e interpretando Lélia, narrando e interpretando a si mesma em refinado jogo de teatralidade, Andreia aproxima e afasta Lélia de si; aproxima e afasta Andreia de si. O palco com raros adereços cênicos, em um pouco mais de uma hora, é  rigorosa e plenamente preenchido pelo trabalho interpretativo de Andreia. Atriz de significativas obras e personagens, apresenta-nos por meio desta obra, sua mais pulsante e significativa criação. Expressões, tempos, silêncios... criam uma bela e significativa syn.tomia cênica. Sim, porque em grego syn é junção, incorporação, união e tomo diz respeito a parte, parcela.


Embalada por uma bela trilha, épico-lírica, o espetáculo embala, acorda, ressignifica e humaniza. Salve o teatro!! E que se possa assistir presencialmente à bela obra, uma, duas, tantas outras e mais vezes.

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