
O que teria pensado Monteiro Lobato se usasse seu “porviroscópio”, máquina para ver o futuro, e visse Tia Anastácia retratada com roupas africanas, exercendo o papel de amiga de infância, ao invés de empregada de Dona Benta? Essa é uma das mudanças da nova edição de “O Casamento de Narizinho”, lançada e adaptada por Cleo Lobato, não por acaso, bisneta do escritor nascido em Taubaté.
A nova versão de Tia Anastácia, ilustrada por Rafael Sam, entra para a lista de adaptações feitas em obras infantis do escritor, que viveu entre 1882 e 1948. Outras mudanças são relacionadas à personagem negra Tia Anastácia, dos livros do Sítio do Pica Pau Amarelo. Trechos hoje considerados racistas, em relação à aparência dela, foram excluídos.
140 anos depois de seu nascimento, Monteiro Lobato continua sendo alvo de polêmica. A discussão de sua obra não é exclusividade de nosso século: o escritor também foi “cancelado” enquanto estava vivo. Os livros do Sítio, por exemplo, foram reprovados para compor conteúdos pedagógicos em 1920. Segundo Cilza Bignotto, pesquisadora de literatura infantil, as obras só foram aceitas quando as falas de Tia Anastácia foram reduzidas -- na época, Lobato era cancelado por dar a personagem negra ‘protagonismo’ demais.
“Ela ser uma pessoa autônoma, que cuidava das crianças, era um incômodo para a sociedade daquele tempo”, explicou a professora. Para ela, a literatura de Lobato tem muito mais traços “antiracistas” do que o contrário. No entanto, trechos claramente racistas também são facilmente identificados na obra do escritor, conteúdos esses que são classificados por ela como “palavras de um homem do seu tempo”.
“Minha família errou ao ter se calado por tanto tempo sobre esse assunto”, admitiu Cleo Lobato, bisneta e responsável por adaptações da obra Lobato. Contudo, ao revisitar a obra, ela também sentiu choque ao ler passagens consideradas racistas. Cleo crê que as obras de seu bisavô não contêm passagens racistas, mas precisam sim ser adaptadas. A bisneta de Lobato vive há muito tempo nos Estados Unidos. Foi no momento de tentar traduzir as obras do autor para o inglês que ela entendeu, como branca, como o racismo estrutural age: alguns papéis desempenhados por negros são derivados de uma cultura enraizada, uma fonte escravista que mantém resquícios na cultura de nosso país mesmo após mais de 100 anos.
Para ela, a literatura brasileira viveu e ainda vive movimentos “antilobato”, o que considera “natural”. Cilza Bignotto afirma que muitas discussões foram baseadas em especulação, sem permitir que o assunto pudesse ser aprofundado ou estudado a fundo. “Ainda não sabemos qual foi o impacto desse ‘cancelamento’, mas sabemos que Lobato ainda sobrevive”, disse Cilza.
Fato é: os livros de Lobato vão continuar nas prateleiras das bibliotecas, resistindo a análises, cancelamentos e reedições. “Lobato escrevia de maneira polêmica sobre assuntos complexos”, definiu Cleo. Por mais difícil que possa parecer chegar a um consenso sobre a obra, um ensinamento universal pode ser tirado de sua biografia. Lobato discutia e fazia. “Precisamos discutir e chegar a soluções, como ele fazia”, finalizou Cleo.
Discussão.
Apesar de ser levado em conta como um “homem de seu tempo”, Monteiro Lobato não só usou termos considerados racistas em sua obra, mas também foi alvo de críticas pelo conteúdo do livro “O Presidente Negro”, obra que foi rejeitada por editoras americanas. Em uma carta de 1928, ele proferiu frases indizíveis nos tempos de hoje, mesmo que em tom de brincadeira.
Afirmou que o Brasil não fazia juz ao Ku Klux Klan, grupo racista americano, ao criticar a imprensa carioca.
Para Ingrid de Sá, liderança do movimento negro, escritora e poetisa, a obra de Monteiro Lobato não pode ser considerada antirracista. “Mostrar a violência cometida contra os negros não é antirracista, pelo contrário, evidência ainda mais a relação de opressão entre brancos e negros daquela época”. Ela afirma que as obras precisam ser lidas de forma crítica.
“Precisamos refletir sobre como o racismo está presente não só nas falas, mas também nas relações sociais dos personagens negros”, pontuou Ingrid.