
A chave do medo.
O adolescente Ariston de Oliveira Lucena não imaginava que temeria ouvir o som de um molho de chaves quando envelhecesse. Mas foi o que aconteceu. O motivo? Tortura durante a ditadura militar.
“Quando o torturador vinha, ele balançava as chaves da cela. Fiquei traumatizado. Passei anos sem poder escutar barulho de chaves”, contou ele a OVALE meses antes de morrer, em 2016.
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Lucena, que trabalhava no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em Taubaté, dizia que tinha pesadelos recorrentes e herdara da ditadura problemas como diabetes, hipertensão e câncer.
Ele lutou contra o regime militar e foi preso e torturado. Foi um dos poucos brasileiros condenados à pena de morte, mesmo tendo 17 anos. Saiu da cadeia depois de 10 anos. Nunca mais se recuperou.
A sombra que pairou sobre Lucena ecoa no presente, quando novamente a ditadura militar volta ao debate público. A pergunta que se faz é: por que não resolvemos essa página sangrenta da nossa história?
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Em artigo no jornal O Globo, em 17 de abril, a jornalista Míriam Leitão revelou áudios do STM (Superior Tribunal Militar) que provam a tortura no período da ditadura.
Os áudios foram compilados pelo historiador Carlos Fico, titular de História do Brasil da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que teve acesso a 10 mil horas de gravações das sessões do STM.
Ele identificou áudios que comprovam a prática de tortura durante o período da ditadura militar, inclusive contra mulheres grávidas que chegaram a abortar após sessão de choques elétricos.
A revelação foi ironizada por militares e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), como o vice Hamilton Mourão. O atual presidente do STM, ministro Luís Carlos Gomes Mattos, chamou a divulgação de “notícia tendenciosa” e disse que a revelação “não estragou a Páscoa de ninguém”.
“Os áudios provam que a tortura era largamente praticada durante a ditadura militar. Que fique claro para quem prega a volta desse regime violento”, disse Carlos Fico.
VOLTA DA DITADURA
No entanto, não é raro ver cartazes e movimentos pedindo a volta da ditadura militar no país, especialmente entre eleitores e os que apoiam Bolsonaro. Tal movimento é visto com preocupação por estudiosos do tema.
Com mestrado em História do Brasil e doutorado em História Social, a professora Maria Aparecida Papali, da Univap (Universidade do Vale do Paraíba), vê com preocupação o crescimento de movimentos antidemocráticos no Brasil.
“Vivemos hoje um momento mais específico. Em nenhum momento tivemos facções, como temos hoje, que trabalham com a perspectiva do ódio, de grupos fascistas de verdade. É muito singular”, afirmou.
“Na minha interpretação da história do país, nunca vi um contexto em que tivéssemos milícias associadas a essa construção fascista, da violência, isso é preocupante.”
Fico critica a postura do presidente que, para ele, atenta contra a democracia ao incentivar condutas violentas.
“O exemplo do Bolsonaro é deletério e já prejudicou muito as relações sociais, institucionais e tudo mais. Precisamos superar essa fase tão negativa da política brasileira e eleger pessoas com compromisso com a democracia.”
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AMEAÇA
Professor de Direito da USP (Universidade de São Paulo), Pedro Dallari vê uma ameaça real à democracia brasileira nos movimentos que defendem a volta da ditadura. Não é apenas uma brincadeira ou questão de opinião. Para ele, isso incentiva a violência.
“Vejo risco real de setores mais extremistas se sintam mais à vontade para praticar atos de terrorismo”, disse Dallari, que foi relator e coordenador da Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes cometidos pelos militares durante a ditadura, entre 1864 e 1985.
“Vejo um risco real. Para mim, o risco não está na possibilidade de golpe de estado por parte de Bolsonaro, mas na desorganização do estado brasileiro, afetando a sociedade como começa a ocorrer com a economia, e em segundo lugar o de levar à radicalização dos setores mais extremistas do bolsonarismo que podem partir para atos terroristas.”
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Os ecos da ditadura que chegam aos nossos dias, não raro, vêm embalados na discussão sobre liberdade de expressão. Essa foi a tese da defesa do deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado a 8 anos e 9 meses pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por ameaçar ministro da Corte.
Em menos de 24 horas, Bolsonaro assinou um decreto que concede “graça” a Silveira, perdoando-o dos crimes aos quais fora condenado.
Para Maria Aparecida Papali, a falta de entendimento do que seja liberdade de expressão, nítida entre os apoiadores de Silveira e Bolsonaro, é outra faceta preocupante dos tempso extremados que vivemos.
“Totalmente contraditório usar a liberdade de expressão para atacar a democracia. As pessoas não percebem que é um ato negacionista. Utiliza o direito de se manifestar para pedir a intervenção e o fechamento disso.”
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