Dá gosto ouvir Maria Helena contar como sua mãe reinava soberana na cozinha da casa de fazenda, entre grandes tachos de cobre e panelas de barro, preparando iguarias para a família. Fico com água na boca ao ouvi-la descrever o empadão de frango de recheio rico, misturas de carnes diversas, ovos cozidos, mais palmito e não sei quantos outros ingredientes dentro da massa feita com farinha e banha; ou ao explicar como enrolar o biscoito de queijo que nunca saboreei igual em minha vida, pois tanto seu formato como a sua massa parecem conter segredos guardados a sete chaves, nem me atrevo a replicar.
Faz bem escutar Ronaldo, marido de Maria Helena, comentar como estava boa a guariroba que comeu num restaurante de estrada; e que a cozinheira lhe explicou que a havia cortado bem finamente e deixado de molho em água de limão antes de refogar, despejando um pouquinho desta mesma água para o cozimento. Na sua fala didática, ele me esclarece sobre a origem da cúrcuma, à qual também chamam de açafrão do cerrado. Eu achava que era fruto; ele me tira das trevas da ignorância explicando que é raiz parecida ao gengibre, sem as reentrâncias do mesmo, e de beneficiamento bem custoso: tem de arrancar da terra na época certa, lavar, raspar, cortar em rodelinhas e levar ao forno até que se transforme num lindo condimento dourado que confere cor única aos pratos onde entra.
Com os pais de minha nora Milena aprendo muito. Eles me ensinam sobre o modo de vida do centro-oeste brasileiro, região da qual pouco se sabia até meados dos novecentos e habitado apenas por indígenas durante muito tempo. Foi no final do século XVII que os bandeirantes paulistas começaram a desbravar aquele espaço que, em pouco tempo, ganhou a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, capital do Mato Grosso, e a Vila Boa, rebatizada de Goiás e apelidada Goiás Velho. Pequena cidade de belo e importante centro histórico, nesta viveu a imensa poeta-doceira ou doceira-poeta, Cora Coralina, cujo nome está tão atrelado a dotes líricos quanto culinários. Ganhou a vida, criou os filhos, escreveu sua poesia na Casa Velha da Ponte, como contava em versos. Depois de sua morte, uma neta reuniu as receitas num bonito livro ilustrado, onde se pode perceber a personalidade desta cozinha regional bastante vinculada aos ingredientes típicos da terra tomada pelo cerrado.
Ah, o cerrado! Aparecem nesta paisagem goiana muitas árvores de caules tortuosos e casca grossa, mas também espécies que florescem abundantes no outono, como os ipês; diferentes tipos de palmeiras, como babaçu, buriti, juçara, macaúba; frutos de nomes graciosos como bacuri, araçá, bacupari, gravatá, cagaita, ingá, baru- que é uma castanha com gosto de amendoim. O pequi, fruto redondo de polpa amarela, e a guariroba, palmito de gosto levemente amargo, são facilmente encontrados e essenciais à despensa das casas goianas.
As tradições culinárias dos índios, dos bandeirantes paulistas e dos migrantes mineiros e nordestinos, que trabalharam na construção de Brasília, aparecem com força no receituário goiano. De não se esquecer a forte influência da milenar e respeitada cozinha árabe, pois o número de imigrantes sírios e libaneses na região é grande e importante. Nos relatos de Maria Helena e Ronaldo é comum aparecer algum prato árabe, como o arroz com castanhas e o charuto de folhas de repolho com costelinha de porco, uma delícia. A avó materna de Milena era de ascendência árabe.
Escolhi fazer a galinhada à moda dos goianos porque ganhei há algum tempo um vidro de açafrão do cerrado e o pó tão bonito em sua cor vinha me desafiando toda vez que eu o olhava. Como presente também recebi outro vidro, do mesmo tamanho, de polpa de pequi, naquele ‘amarelo que engendra’, como disse a Adélia Prado. Faltava o frango, que esperava achar caipira, mas que nada. Foi o de granja mesmo. Eu gostei do resultado, achei que ficou ótimo, e minha opinião foi compartilhada pelo fotógrafo Dirceu Garcia, autor das imagens que você vê na foto, e de Elza Reis, a competente auxiliar.
Fiz assim. Cortei em pedaços, lavei, enxuguei e temperei o frango com sal, pimenta-do-reino e limão. Deixei tomar gosto. Refoguei depois de meia hora em azeite aquecido em panela de fundo groso. Tendo ficado douradinhos, retirei os pedaços para uma travessa e reservei. No azeite que ficou no fundo da panela, fritei cebola e alho bem picadinhos e esperei murchar. Agreguei o pequi em conserva ( ele já vem fatiado) e o açafrão do cerrado, mexi. Aí coloquei o arroz lavado e escorrido e voltei a mexer. Salguei de leve, lembrando que já havia colocado sal no frango. Reuni o frango ao arroz. Despejei a água fervente e tampei a panela, deixando cozinhar em fogo médio por meia hora. Quando a água secou, espetei a ponta de um garfo para testar o cozimento do frango. Senti que a carne estava macia. Desliguei. Voltei a tampar a panela, aguardei cinco minutos e servi na própria panela, uma Creuzet vermelha que adoro. Antes de levar à mesa coloquei ao redor cebolinha e salsinha que Elza havia picado de um jeito só dela.
INGREDIENTES
1 frango grande cortado pelas juntas
4 xícaras (chá) de arroz
150 gramas de pequi em conserva
6 colheres (sopa) de azeite
1 colher (sobremesa) de açafrão da serra
2 cebolas médias
4 dentes de alho
Sal a gosto
Pimenta-do-reino a gosto
½ limão espremido
porção: 8 pessoas
dificuldade: fácil
preço: médio