OPINIÃO

Tomar para desapegar


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“Quando eu digo “sim” a isso, da maneira que aconteceu, eu recebo então uma força especial” – assim estava escrito. Lembro-me bem de ter feito uma pausa quando eu li pela primeira vez a frase acima, trecho de uma entrevista realizada com Bert Hellinger, psicoterapeuta alemão, que se referia à energia vital que ganhamos dos nossos pais.

Ele focava no que, tecnicamente, chama-se “primeiro círculo”, lugar onde constrói-se a relação com a ancestralidade, em especial com os nossos genitores primordiais, o pai e a mãe. Eu compreendia facilmente o quão importante e simples era aceitar o que era oferecido por cada um dos pais quando se tratava de crianças esperadas em casais razoavelmente estruturados

Contudo, a realidade não é bem assim. Basta olhar para saber que estamos repletos de histórias de abortos, paternidades renegadas, abusos e incestos de toda ordem. Muitas destas condições já existiam quando as crianças chegaram ao mundo e, inevitavelmente, elas crescem em ambientes propícios para várias feridas emocionais.

Caso o processo de cura das feridas e estabilização dos traumas passe pela “aceitação” integral da experiência de parentagem de cada uma destas pessoas infortunadas, achei, a princípio, uma tarefa bem difícil de acontecer.

Levou um bom tempo até que eu começasse a entender a profundidade deste processo. Na realidade, o melhor termo para ele seria “tomar”, uma tradução do alemão “nehmen” que representa não uma aceitação passiva dos fatos e heranças (o que pode ser até forçado e agressivo), mas a integração deles consigo mesmo, tal como se “toma” um copo d’água, onde o líquido passa a fazer parte no nosso corpo.

Esse “tomar integralmente” é um trabalho, um empenho consistente que deve ser sustentado e não simplesmente uma concordância fraca que beira a tolerância do que houve. Isso só é possível quando a pessoa se aperceber que a sua essência mais fundamental e profunda, que é a oportunidade de estar vivo, não foi afetada, apesar de agressões, abandonos e medos vividos.

A capacidade fundamental da vida é se movimentar em direção a um “lugar” com maior capacidade de vida, sempre prosperar. Nossas dores e ressentimentos são justos para compreender o ocorrido (por isso que “tomar” é muitas vezes dolorido e exige treino), contudo, não podem se transformar em correntes que nos impeçam de levantar, se virar e seguir em paz, integrando o que nos cabe, deixando para trás o que é simples memória.

Seu pai foi duro? Sinta muito. Dê voz a sua dor e insatisfação. Permita-se ouvir até que haja espaço para saber que ele próprio pode ter tido um pai mais duro ainda. Os tempos e circunstâncias em que ambos viveram podem ter demandado o que hoje é visto como crueldade. Ele nunca aprendeu o amor e o carinho como você teve oportunidade e talvez por isso ele não lhe deu exatamente o que você esperava.

Veja que, mesmo sendo duro, ele se dispôs a passar a vida adiante. Você é a prova disso. Receber essa semente é honrar essa oportunidade. Seguir em frente é reconhecer que a dureza e a escassez fizeram parte de um tempo que não é mais o seu e por isso podem existir somente em lembrança, sem controle sobre os seus próprios passos

Dr. Alexandre Martin é médico especialista em acupuntura e com formação em medicina tradicional chinesa e osteopatia.

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