Estranha espécie a racional. O cultivo da erudição não equivale, inevitavelmente, ao crescimento das virtudes. É o que explica seres bem providos de cultura se comportarem quais crápulas, evidenciando que o apuro intelectual pode se afastar da evolução moral.
Tais considerações derivam de um pouco de experiência, nesta já longeva existência, mas também da leitura de um ensaio em que Pelágio Lobo comenta a amarga impressão de Francisco Pati, colhida numa passagem do “Diário Secreto” de Humberto de Campos.
Nesse texto, Humberto de Campos fere a reputação do poeta Alberto de Oliveira. Segundo Pati, “a impressão foi de lástima e terá sido também de repugnância, não pelo grande poeta assim maltratado, mas pelos processos tão cheios de malevolência do autor daquelas Memórias”.
Pelágio também leu o “Diário Secreto” de Humberto de Campos e confessa “que, lendo quase todas essas páginas do torvo legado literário, a impressão que fica é de uma crescente comiseração pela incoercível malignidade do seu autor”.
A ponderação de Pelágio é de que “Humberto era um rebelado contra o mal incurável que o atenazava, que lhe ia tirando aos poucos a visão, algumas vezes lhe obscurecia a inteligência e o abatia com a perspectiva de uma morte que o vinha deformando a prestações, até chegar a hora de o recolher com aquele aspecto que, no Código de Justiniano, retirava ao ente humano os atributos de pessoa, definindo-o como “monstrum vel prodigium”.
Pode ter sido essa certeza de um fim de vida que sabia horrorizante para os outros e para si mesmo, que lhe avivou, no cérebro, as tendências más que já vinham sendo esboçadas desde os tempos passados, quando conseguiu popularidade e lucro na exposição da obscenidade de que “A Maçã” ficou sendo o símbolo exponencial.
Enquanto para alguns raros exemplares humanos, o sofrimento purifica e santifica, para Humberto, a rebeldia contra um mal íntimo, de que o mundo não tem culpa, desperta a perversidade doentia. O consolo pelo infortúnio seria derramar sobre conhecidos e, até, sobre amigos que lhe abriram a alma em confidências sagradas, todo o veneno da mordacidade que a moléstia fez adensar e concentrar.
Humberto de Campos, paradoxalmente, cultivara estilo seguro, frequentemente repassado de doçura e suavidade. Estilo para escrever coisas amáveis e difundir ideias dignas. Mas que, com a enfermidade, passou a ser instrumento de crueldades e ingratidões.
Não o dignifica a divulgação de suas memórias. Um de seus colegas intelectuais definiu o “Diário Secreto” com apurado rigor de veracidade: “Abriram a cova em que isso estava sepultado e dela só podiam sair esses miasmas de corpo em decomposição”.
Essa obra revelou no escritor primoroso que ele, incontestavelmente, foi, um outro traço não recomendável de caráter - o da sua imensa vaidade. Era um estado mórbido anterior, que a moléstia avivou e fez agudo.
Esse exemplo de maldade diluída em livros não deixou de existir, lamentavelmente, em nossos dias. O ideal seria que a produção escrita só servisse para enlevo, para o crescimento ético e moral, para referências suaves, para coisas amáveis.
Pensemos, prioritariamente, em divulgar o edificante. Aquilo que ajude o ser humano a persistir na vocação de perfectibilidade, que é o caminho natural de quem se acredita digno de se tornar a cada dia um pouquinho melhor do que já foi. Como os franceses gostam de dizer: “Aujourd’hui, meilleur qu’hier, moins que demain”: Hoje, melhor do que ontem, menos do que amanhã.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)