A História não se faz apenas por registro de grandes eventos. Batalhas, invasões, conquistas. Nem só pela coleção de desgraças: pestes, epidemias, desabamentos, enchentes e inundações.
A verdadeira história é aquela que acontece ininterruptamente, todos os dias, na vida de pessoas concretas, nem sempre conhecidas. Seres humanos anônimos, que lutam, perseguem seus objetivos, preservam a família e seus valores. Estas criaturas não aparecem na história oficial.
Uma coleção de existências não celebradas nos fastos do relato oficial de uma cidade é um repositório valioso para a inspiração de gerações subsequentes. Compostas, tanta vez, de jovens que pensam que o mundo só nasceu a partir da chegada deles a este maltratado planeta. Não se preocupam em saber que a Terra existe há milhões de anos e que milhões de vidas antecederam as nossas.
É bom pesquisar essas vidas anônimas e procurar trazê-las a conhecimento dos adventícios. Talvez alguma alma sensível nelas se inspire para conferir sentido a vidas sensaboronas. A vidas sem sentido, infelizmente hoje não escassas.
Encontro um exemplo em José Maximiano Pereira Bueno. Quem hoje se lembra dele? Foi por volta de 1880 que os Pereira Bueno, família jundiaiense, formada por Francisco de Paula Pereira Bueno e sua mulher Ana Joaquina Gonçalves Pereira Bueno, deixou nossa cidade e foi morar em Campinas. Esta já era uma portentosa urbe. Com o casal foram seus oito filhos, dentre eles o filho José, que se empregou como telegrafista na estação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, ferrovia inaugurada em 1872.
José era um jovem bem-educado. Ele não se conformava com o comércio de escravos. Em Campinas ainda havia quem chegasse da Bahia ou Minas trazendo africanos que eram considerados “mercadorias”. Ele assistiu a uma dessas vendas, realizada no Largo da Matriz Nova, numa rua que, paradoxalmente, veio a se chamar 13 de Maio.
O comerciante de africanos oferecia à venda um grupo de jovens. Dentre eles, uma recém-mãe ainda carregando seu filho. Mais um rapaz, que era chamado de “peça” pelo vendedor. Para mostrar que o moço era sadio, o vendedor quis que ele mostrasse os dentes do moço. Boa dentição significava saúde e higidez corporal.
O jovem resistiu e manteve a cerrou os lábios. Então o feitor bateu-lhe com o cabo do relho, fazendo sangrar a boca do rapaz.
José Bueno fremia de indignação. Teve vontade de esganar o vendedor e assumiu consigo mesmo um compromisso: iria buscar todos os escravos, na fazenda do comprador, a qualquer custo. E os libertaria ou os recolheria em quilombos.
Juntou-se aos abolicionistas campineiros e cumpriu a promessa. Conseguiu localizar aquele lote de seres humanos sujeitos à execrável servidão e obteve a alforria de todos eles.
Não que isso tenha sido fácil. Por essa atuação corajosa, foi ameaçado de agressão física e de morte. Arriscou a vida, mas ficou em paz com sua consciência. Já como adulto, vinculou-se ao grupo republicanista campineiro, formado por Glicério, Jorge Miranda, os Quirinos, José Paulino, Rangel Pestana, Bernardino de Campos e outros próceres. Além de acreditar na República, esse grupo cuidou de Campinas quando irrompeu a febre amarela em março de 1889.
É um jundiaiense hoje pouco lembrado, mas que honrou sua cidade e sua gente. Não custa lembrar que Jundiaí é mais antiga e, portanto, mais tradicional do que Campinas. Tanto que esta filha gigantesca se chamava Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí. E a filha se lembrou da mãe quando a febre amarela dizimou boa parte de sua população. O célebre “Colégio Florence” deixou Campinas e se estabeleceu em Jundiaí. Terra saudável, abençoada pela Serra do Japi, hoje tão ameaçada em virtude da especulação imobiliária e da falta de uma Polícia Montada, que ajudaria a sua preservação.
José Renato Nalini é reitor, docente e secretário-executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo