Estamos tratando desse assunto aqui há várias edições e por mim sustentado há anos, em especial pelo fato de que sou defensor dessa política todo esse tempo. Falar de cotas raciais é falar de justiça social, reparação histórica e, sobretudo, compromisso com o futuro. Elas, as cotas, não tiram a oportunidade de ninguém. Na real, devolvem oportunidades que, por séculos, foram negadas à maior parcela da população. Fazem parte dos instrumentos transitórios e indispensáveis para corrigir o desequilíbrio estrutural que marcou e ainda marca nossa sociedade.
Infelizmente até os dias atuais deparamos com pessoas que se arvoram contra o regime, apesar dos inegáveis resultados apontando, por exemplo, o alto desempenho dos que ingressaram nas universidades por esse regime concluíram com resultados iguais ou melhores daqueles que acessaram pelo regime universal. É isso que acirra as manifestações em sentido contrário a tal regime.
Em que se pese toda evolução do tema, ainda deparamos com posturas diárias de discriminação racial, no mais das vezes em razão da ausência da diversidade em sentido amplo nos postos de mando e organismos públicos importantes e que tem o dever institucional de combater as desigualdades e maldades e, nessa caminhada um promotor de justiça do Estado do Rio Grande Sul, em uma sessão de júri realizada no final do mês de agosto/25, afirmou que o “réu não teria cometido crimes se tivesse recebido chibatadas quando mais novo”!
Não bastasse a incitação e gravidade, encontramos, em paralelo, sutileza ímpar no trato que pode até passar longe da percepção racial justamente em vista do distanciamento da realidade, proximidade e convivência, o que não ocorre com a pessoas vítimas desses assaques.
No futebol toda semana as ofensas se repetem. Nas abordagens policiais não há diferença. Nas penitenciárias a maior população é de pessoas negras, por circunstâncias óbvias, como o jovem branco com um quilo de cocaína é considerado “usuário” e o negro, com alguns gramas é considerado “traficante”, já exaustivamente comprovados por toda mídia e tribunais.
O letramento é fundamental porque não se trata apenas de adquirir conhecimento, mas desenvolver habilidade para identificar, analisar e combater práticas discriminatórias na busca incessante da redução das desigualdades.
Já ouvi pessoas alegando que eu só trato desse assunto, o que a mim não afeta até porque, e até perdi as contas das manifestações afirmando mudanças no olhar, a partir das leituras desses textos, o que, por si só me enche de orgulho e sensação de missão cumprida.
É preciso entender que a igualdade não se faz apenas no discurso bonito e nas promessas das campanhas, mas, na prática cotidiana, nas decisões institucionais e nas atitudes pessoais. Enquanto um promotor pode falar em “chibatadas”, uma juíza afirmar que o “latrocida não tem estereótipo de bandido” porque é branco, de olhos e cabelos claros e ainda serem tratados com condescendência, é sinal de que a luta está longe de terminar. Enquanto negros/as seguidos em shopping, mortos ou preteridos em entrevistas de emprego, é sinal que não basta dizer “não sou racista” é preciso ser ativamente antirracista.
As cotas são, portanto, um passo concreto e corajoso rumo à verdadeira igualdade. Não resolvem tudo, mas abrem, portas e mostram caminhos. Permitem que o Brasil enxergue, ainda que tímida e lentamente, a riqueza que sempre existiu em seu povo e por muito tempo invisibilizado.
Se o debate incomoda, é porque toca onde ainda há feridas abertas. E só cura quem tem coragem de encarar a dor. Por isso, volto à pergunta inicial: você é contra as cotas ou contra a igualdade? Porque, no fundo, são coisas bem diferentes. Defender cotas é defender um País mais justo, mais representativo e mais humano. E disso, sinceramente, enquanto tiver forças, não pretendo abrir mão.
Eginaldo Honório é advogado, doutor Honoris Causa e conselheiro estadual da OAB/SP (eginaldo.honorio@gmail.com)