OPINIÃO

Bravura na desgraça


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É da miserável condição humana esquecer-se rapidamente daquilo que causa desconforto. Por exemplo: parece não nos lembrarmos mais da covid-19, que deixou mais de setecentos mil mortos, fora os não computados. Porque as sequelas continuaram a levar outros para o mistério.

Se nos olvidamos do que ocorreu há quatro ou cinco anos, o que dizer de desgraças que aconteceram em 1889, ano em que o golpe militar derrubou o magnânimo Imperador Pedro II?

Pois naquele 1889, grassou violentíssimo surto de febre amarela, que provocou alarme, confusão, terror e morte. Desconheço registros na minha cidade, Jundiaí, mas historiadores campineiros resgatam o protagonismo de um bravo pugilo de cidadãos, liderado por um jundiaiense: José Pereira Bueno.

Ao lado de jovens que apregoavam a queda do Império, dentre eles Campos Sales, Jorge Miranda, Francisco Glicério, José Paulino, Bernardino de Campos e Rangel Pestana, José Pereira Bueno esmerou-se em abnegação e altruísmo. Pôs sua vida em risco, tentando poupar vidas. Junto com o Padre Neri, que depois se tornou o primeiro bispo de Campinas, organizou e desenvolveu atividade benemérita, criando uma associação “Protetora dos Pobres”. Sua missão era a visita domiciliar a enfermos e abandonados, pobres ou remediados, porque todos precisavam dessa proteção.

Assim que alguém caía doente, surgia em sua casa alguém da “Protetora”. O enfrentamento foi atroz. Campinas registrava então uma população de cerca de três mil pessoas, das quais oitocentas contraíram a febre amarela.

Para evidenciar o que foi essa catástrofe, encontra-se no livro de Pelágio Lobo, “Velhas Figuras de São Paulo”, uma carta que José Bueno endereçou ao General Glicério, que já estava no Rio de Janeiro, nas articulações do movimento que culminou com o brado do Marechal Deodoro da Fonseca, aquilo que hoje chamamos de “proclamação da República”.

Diz o jundiaiense: “Glicério. Não imagina como isso está! Agora é que estamos na epidemia. Não sei como nos sairmos dela, me responda esta carta. O José Paulino caiu ontem e não vai bem; o Oto Langard está pateta, com a família toda doente. Não temos mais vereadores na cidade; não haverá perigo de sofrermos algum desgosto em estarmos levando o serviço como se o José Paulino estivesse presente? Eu, o Maximiliano e o Luís fiscal temos autorizado todas as despesas que são necessárias – tudo, tudo, como se o José Paulino estivesse aqui. Essas despesas são altas e acho que temos mesmo autorizado alguma coisa mais do que o estabelecido. Fazemos isso porque não tem aqui autoridade a quem se entregue esta população que agora é que sabe o quanto está sofrendo. Não sei quantas casas, das habitadas, não têm um doente, mas sei de muitas que têm 4 e 5, e outras que têm 2, porque já morreram 2 e 3!

Se você vir que a Câmara pode sofrer, ou por outra, que o José Paulino pode sofrer algum desgosto pelo que estamos fazendo na ausência dele, você nos diga, porque faremos o José Paulino chamar outro vereador (quem há de ser?) para assumir a direção e responsabilidade disto tudo e nós vamos descansar de ver lágrimas e misérias. Não se escreve o que por aqui vi! Não fazemos outra coisa senão tomar apontamentos e atender, só e exclusivamente, o serviço da peste – é um trabalho tal que quando chega a noite, a gente está esbandalhado. Venha logo sua resposta para nossa tranquilidade. Adeus, o amigo José Bueno”.

Veja-se o cuidado com a população e o zelo para com o Erário. Belos e longínquos tempos!

José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br) 

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