Romance de Lilia Guerra, “O céu para os bastardos” é um livro e tanto. Sua protagonista, Sá Narinha, nem precisa pedir licença para integrar o elenco de grandes personagens da literatura brasileira.
Mulher de princípios rígidos, de uma retidão que impressiona, ela não tem certeza de como agir, mas sabe muito bem o que não deve fazer. Sá Narinha mora em Fim-do-Mundo, na periferia de São Paulo.
Trabalha como empregada doméstica na “terra dos maiorais”, um bairro de gente endinheirada na capital paulista. Dona Gerda, sua patroa, traz consigo os valores de certa aristocracia de Pindorama, herdados de sua mãe Árvada, para quem as empregadas eram “ratazanas”. Viúva, Gerda tem um filho, Betinho, que se interessa muito por culinária e acompanha a protagonista quando ela está na cozinha a preparar refeições.
A trajetória de Sá Narinha (registrada Maria Expedicionária) é igual a de milhões de brasileiros: no passado mais distante, a senzala; no mais recente, a vida em meio rural e a migração para a cidade grande, em busca de oportunidades. No presente, as batalhas do dia a dia num mundo áspero, erguido para ser usufruído pelos outros. Narinha vive com sua irmã, Valdumira, a Mira, e teve um filho, Júlio César. É mãe solo. Mimado na infância pela tia Mira, conduzido na linha dura pela mãe, Júlio César pouco aparece no livro. Mas é dos personagens mais importantes da narrativa. Dele, chega a dizer a mãe: “Eu gostaria de não ter sido a estufa que o recebeu. Que o fortaleceu e o abrigou”. Comoção e dor embutidos em proporções equivalentes.
Lilia Guerra conhece bem seu ofício. Mescla lirismo e dramaticidade, não deixando de lado o humor (como na cena do ônibus em que Narinha fica ao lado da faladora Risoneide: “Nem por um segundo deixei de ouvir sua voz”). Sabe criar cenas, tipos e situações (a sequência na feira do bairro, o velório de um conhecido, a fala de Narinha para Regina, sua nora...). Sobra beleza em “O céu para os bastardos”. A escritora deixa de lado maniqueísmos e o apelo fácil da idealização: em Fim-do-Mundo não reside somente a turma do bem e onde Narinha trabalha não vivem os malvados. Em meio a muita solidariedade e determinação há também maledicência e pequenez. Não aparecem super-heróis, mas humanos. Altruísmo e torpeza, o lado luminoso e o sombrio da força alternam-se nessas páginas. E grandes personagens ocupam espaço: além da protagonista, Betinho, por exemplo. O rapaz escapa da trilha pré-traçada por Gerda e enreda-se em outros caminhos. A protagonista diz a respeito dele, em tom de brincadeira, que o garoto “foi trocado na maternidade. Deve ter um filho da dona Gerda perdido por aí. Deve sim”.
Lilia Guerra nasceu em São Paulo, em 1976. Estreou em 2014, com “Amor avenida”. Em 2018, lançou o volume de contos “Perifobia”, e em 2021, saiu “Rua do larguinho”. “O céu para os bastardos”, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, foi editado em 2023. Lilia Guerra participa de um seleto grupo de autoras que renovam a cena literária brasileira, como Eliana Alves Cruz, Aline Bei, Micheliny Verunschk... Evoé, dona Lilia.
Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)