Cidades civilizadas preservam sua história. Ela está não apenas nos fatos, nas fotos, nas memórias, mas também nos seus edifícios. Paris, a Cidade Luz, mantém aqueles maravilhosos prédios com o mesmo número e a mesma denominação há séculos. Muitos deles foram adaptados para receber elevadores, ar-condicionado e banheiros modernos. Mas se submeteram ao retrofit, a estratégia de manter a fachada, o design arquitetônico e reformar sem mutilar.
É muito comum que naqueles monumentos haja placas indicativas de quem ali residiu, ainda que tenha sido temporariamente. Com isso, o parisiense vai honrando a memória de seus maiores.
Infelizmente, essa prática não conseguiu adeptos na escala necessária a um país desmemoriado como esta Terra de Santa Cruz. Aqui, a se confiar na capacidade visual de encarar as cidades, a atividade mais lucrativa é a demolição. Tudo se coloca abaixo. E multiplicam-se estacionamentos, pois as cidades servem mais ao automóvel do que às pessoas.
Cheguei a brincar com meu confrade de Academia Paulista de Letras, o inesquecível Antonio Ermírio de Moraes, indagando se a Votorantim estava a incentivar a derrubada de tudo o que fosse antigo, para faturar mais cimento. É óbvio que já sabia a resposta. A substituição do que saíra de um padrão estético de geração anterior pelo mau gosto da geração subsequente é uma das características da perda de cidadania, do decréscimo da cultura histórica, do desapreço pelos espaços aos quais as pessoas não se sentem vinculadas, pois vieram de outras plagas.
Nossa cidade não é exceção. Construções icônicas desapareceram. O “Asylo dos Velhos” da rua do Rosário, a “Escola Normal” na esquina da Barão com a Padroeira, a bela residência dos Bocchino, na esquina da Rangel, também com a Padroeira.
Havia um projeto de fazer do centro um corredor verde, como caminho ecológico tão em uso em cidades civilizadas. Começava na residência de Hermes Traldi, valia-se da mata que havia no Mosteiro de Sant’Ana, que nós chamamos de São Bento, um vasto conjunto arbóreo. Não foi feito. E o centro nervoso da cidade, que possuía residências senhoriais e típicas de uma época, foi transformado num comércio típico às estações rodoviárias antigas. Desapareceu o charme de um comércio como “Marchi Jóias”, “A Pauliceia”, Casa “Independência”, Casa “Trevo”, presentes “J. Oliveira” e até lojas pitorescas como a “Casa Coimbra”.
Incrível que uma cidade com arquitetos como o visionário Vasco Antonio Venchiarutti, Ariosto Mila, que foi diretor da famosa FAU-USP, Antonio Fernandes Panizza, e tantos outros, tenha deixado acontecer essa mutilação estética.
Quando escuto falar em “requalificação” do centro, ouso ter esperança de que ele possa voltar a ser aquele espaço agradável em que as pessoas possam caminhar sob árvores, as maiores amigas da vida com as quais se pode contar. Ainda é muito incipiente a educação ecológica voltada ao cultivo e à zeladoria arbórea. Isso só acontece em comunidades muito avançadas.
A remodelação dos centros históricos não pode prescindir da colaboração de urbanistas, dearquitetos, de historiadores, de sociólogos, de gente que ame a cidade. Não é possível demonstrar amor por um espaço desprovido de pertencimento.
Há bons exemplos até no Brasil. Curitiba, por exemplo. Ou parte das cidades históricas de Minas. Mas é preciso uma política pública permanente, que não oscile diante das contínuas mudanças de rota, diante do costume de se “reinventar a roda” a cada nova gestão.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)