Terrível e temível. Dois adjetivos para serem colados em Celestino, protagonista de “A visão das plantas”, romance da angolana Djaimilia Pereira de Almeida. O sujeito tem nome divino, mas para preencher seu histórico de crueldades é preciso fôlego. O livro é curto, tem menos de 90 páginas, e conta uma história inusitada, muito bem estruturada pela autora. O enredo se passa em ano indeterminado, provavelmente entre o final do século 19 e o início do 20, numa cidade litorânea de Portugal. Celestino é um ex-capitão de navio negreiro que, longe da ativa, volta para sua cidadezinha natal para terminar seus dias. Retorna para a casa de sua família e que ficara sob os cuidados da mãe, agora falecida. Limpa a casa até então abandonada e fica com o mínimo de mobiliário e roupas para viver por lá. O que passa a fazer de maneira caprichosa e diligente é cuidar de plantas, no jardim e no quintal da propriedade.
Celestino revela-se um jardineiro de primeira grandeza, cujas plantas sob seus cuidados inspiram elogios. Pouca gente frequenta a casa: um padre – velho pároco local, confessor da mãe de Celestino – um sobrinho do antigo caseiro, e um trio de crianças curiosas, fascinadas pelas histórias de mar e guerra do capitão contador de façanhas. Celestino reprimiu amotinados em seu navio, também matou muita gente em terra, nas incursões pelo território africano. Mas o narrador não adjetiva seu protagonista. Cabe a nós, leitores, sabermos com quem estamos lidando. O violento lá do passado é um exímio e prestativo jardineiro, o bom velhinho do presente. O diabo virara anjo zeloso.
Celestino inspira lendas urbanas. Nos primeiros tempos da volta a sua cidade natal, curiosos querem saber de sua vida. Ele mantém-se recluso. Sai pouco, para comprar alimentos e um ou outro produto para seu jardim. As hipóteses acerca de sua vida correm soltas. Pintam-no com cores carregadas, algumas delas acertadas na tonalidade. Celestino dá de ombros. Não guarda remorsos de seu passado. A certa altura, diz o narrador: “Atrás das sebes, Celestino era um vulto de bem com a vida”.
Não julga ter contas a acertar com ninguém. O padre insiste para que se confesse, mas o marinheiro mantém-se arredio. Sua atenção volta-se toda para a vegetação exuberante cuidada por ele de maneira diligente e carinhosa. As plantas não o recriminam. As mãos capazes de asfixiar, degolar, abandonar e estrangular agora zelam. Volta o narrador: “Sentia-se irmão do seu quintal, encontrada a sua raiz. Não eram as plantas, que não fazem perguntas, muito mais proveitosas do que o aborrecido padre, com os seus olhos culposos?”
Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda, capital de Angola, em 1982. Mudou-se ainda criança, com a família, para Portugal. Passou a infância e parte da juventude nos arredores da capital portuguesa. Formou-se em Estudos Portugueses pela Universidade Nova. Fez seu mestrado e doutorado pela Universidade de Lisboa. Seu livro de estreia, “Esse cabelo”, foi lançado em 2015. Em 2019, saiu “A visão das plantas”. Atualmente leciona na Universidade de Nova York, nos Estados Unidos.
Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)