Nunca o mudo teve tanta informação à disposição sobre qualquer assunto, inclusive, até do ponto geográfico mais remoto da Terra. Por onde passa um satélite pode haver transmissão de notícias. Em tempos de excesso de comunicação, principalmente via redes sociais, um grande questionamento paira no ar: o que é verdade, hoje em dia? A resposta, longe de ser simples, está profundamente ligada à forma como nós, seres humanos, percebemos, registramos e relatamos o que vivemos.
No mundo digital muitas das informações estão contaminadas por interpretações, interesses e algoritmos que reforçam vieses. A verdade deixou de ser um ponto fixo para ceder lugar a um campo de batalha, sujeito a narrativas, emoções e contextos. Se no campo individual a memória está sujeita a distorções, no coletivo (mídias sociais), o fenômeno se potencializa. As plataformas digitais transformaram cada usuário em narrador de versões. A narrativa circula em bolhas de afinidade, reforçada por algoritmos que privilegiam o que gera engajamento. Discernir verdade de narrativa tem se tornado laborioso e estressante.
Grupos interpretam e compartilham a partir de suas convicções. Narrativas ganham roupagem de verdade. O fato é fragmentado em múltiplas leituras, descontextualizado, dilacerado para atender a interesses diversos. As narrativas disputam legitimidade num mix de verdade e opinião, dando força àquilo que é repetido, e não necessariamente ao que é mais próximo da realidade. O teatro da vida está montado. Emoções à flor da pele são descarregadas em postagens cheias de indignação ou ironia, viralizando rapidamente sem análises cuidadosas ou evidências comprovadoras.
A psicologia e a neurociência explicam a complexidade de como as pessoas percebem e interpretam a realidade. Um exemplo clássico para demonstrá-lo é quando vários indivíduos presenciam o mesmo evento. Dificilmente seus relatos coincidem.
Nossa memória não funciona como uma fotografia. A lembrança é reconstruída a partir de esquemas mentais, crenças e experiências anteriores, demonstrava o psicólogo britânico Frederic Bartlett já em 1932. Duas pessoas podem ver o mesmo fato e recordá-lo de maneiras distintas. A psicóloga Elizabeth Loftus comprovou em seus estudos que a influência externa pode distorcer a memória de testemunhas, e se conversarem entre si, ocorre a chamada conformidade de memória - uma acaba ajustando sua lembrança à da outra, mesmo que incorreta.
A neurociência mostra que situações de estresse intenso ativam estruturas que registram fortemente alguns detalhes (como uma arma em cena), mas enfraquecem a percepção do contexto. O cérebro prioriza o que ameaça a sobrevivência, em detrimento de outros elementos.
O que chamamos de "fato" é, na prática, um mosaico de percepções. O indivíduo traz seu viés cultural, emocional e cognitivo. O evento existe, mas sua tradução em palavras, relatos e interpretações passam pelos filtros humanos. O desafio para hoje é mantemos uma postura crítica e cuidadosa para discernir o que é fato, opinião ou narrativa. Verificar diferentes fontes antes de aceitar uma versão. Valorizar a escuta e o confronto de pontos de vista com civilidade.
Rosângela Portela é jornalista, mentora e facilitadora (rosangela.portela@consultoriadiniz.com.br)