Toda pessoa tem o direito de estar onde, quando e como quiser. Parece simples, mas este é, talvez, um dos maiores desafios da democracia. A sociedade brasileira ainda insiste em colocar barreiras invisíveis – e às vezes bem concretas – para limitar quem pode ou não ocupar determinados espaços. Sobram exemplos de exclusão: a ausência de minorias nos lugares de mando, a sub-representação de mulheres, negros, indígenas e pobres em cargos de poder, e o constante silenciamento de vozes que poderiam mudar o rumo da história.
O ministro Ayres Britto, ainda no Supremo Tribunal Federal, sintetizou o drama: no Brasil se discrimina por tudo. Porque é mulher, porque é indígena, porque é preto, porque é branco, porque é gordo ou magro. A lista é infindável.
A raiz disso? A meu ver, passa diretamente pela educação – ou pela sua falta. Não a educação que se restringe a fórmulas prontas nos bancos escolares, mas aquela capaz de formar cidadãos críticos, conscientes e preparados para conviver com a pluralidade. O problema é que, em vez de programa de inclusão, vivemos um “projeto” de exclusão.
O retrato do país confirma: milhões de analfabetos funcionais (pessoas que até leem, mas não compreendem. Que escrevem, mas não interpretam. Que não conseguem estabelecer relações mínimas entre texto e realidade), esse terreno fértil se transforma em prato cheio para oportunistas de toda ordem. Uma população educada pela metade é facilmente dominada – e essa parece ser a estratégia de manutenção do poder.
A dominação também se infiltra no material didático, carregado de ideologias eurocêntricas. A história ensinada apaga os feitos de indígenas, negros, mulheres e de tradições religiosas não hegemônicas, na mitologia grega Hermes é exaltado como mensageiro, mas Exu, seu equivalente africano, é demonizado. Artemis é celebrada como deusa da caça, enquanto Oxóssi é relegado à margem. Atena simboliza a justiça, mas Xangô enfrenta preconceitos. O mesmo acontece com Oxum e Afrodite. A diferença não está na essência dos mitos, mas na origem deles.
E os exemplos não param aí. O africano Imhotep, o verdadeiro pai da medicina, foi apagado da história em favor de Hipócrates. Imhotep deixou registros de mais de 200 doenças e seus tratamentos, praticou cirurgias, organizou um sistema hospitalar no Egito antigo e fundou o que pode ter sido a primeira escola de medicina do mundo. Mas a narrativa dominante preferiu ignorar sua contribuição, consagrando os gregos como pioneiros. Um roubo simbólico que ecoa até hoje, reforçado pelo discurso de filósofos iluministas que, paradoxalmente, insistiam em classificar negros como seres inferiores, sem alma.
Esse apagamento sistemático não é acidente, mas “projeto educacional” que nega presenças, que cala vozes, que diminui histórias e insiste em moldar o Brasil como país de poucos e não de todos ou para todos.
Já passou da hora de mudar o roteiro. A verdadeira democracia só se realiza quando cada pessoa tem assegurado não apenas o direito de estar presente, mas também o direito de ser ouvida, respeitada e reconhecida. A presença não é concessão: é direito. E enquanto ela for negada, a ausência continuará a produzir feridas profundas e injustiças que se arrastam por séculos.
A presença desses representantes na sociedade, em igualdade de condições e de oportunidades, permite a entrega real e potente de políticas públicas da mais alta qualidade, na medida em que a visão passa a ser operacionalizada de forma mais racional, justa e equilibrada, evitando, destarte e, por exemplo, o encarceramento em massa de pessoas negras a partir da visão distorcida imposta contra esse importante segmento da sociedade. De mesmo modo os ataques contra religião de matriz afro se reduz; a educação formal, honesta e verdadeira contribui na redução e até eliminação das desigualdades.
A partir do olhar igualitário, seguramente, os danos causados à população, como um todo, se reduz substancialmente e, com absoluta certeza, todos sairão contemplados e satisfeitos. Ainda que seja um sonho, se sonharmos juntos, poderemos torná-lo real.
Eginaldo Honório é advogado, doutor Honoris Causa e conselheiro estadual da OAB/SP (eginaldo.honorio@gmail.com)