"Não sou de tuas negas!" — gritou alguém e riram ao redor.
Riram como se fosse só piada. Mas há palavras que, mesmo ditas com riso, machucam. E o mais perverso é que, no Brasil, aprendemos a rir do que fere. O racismo linguístico é uma das formas mais sutis — e cruéis — de violência contra a população negra. Ele se disfarça de brincadeira, ditado popular, costume antigo, e por isso mesmo é tão resistente e tão devastador.
Desde cedo, aprendemos a associar o negro ao que é negativo. “Dia de branco” como sinônimo de compromisso sério. “Mercado negro” para o que é ilegal. “Lista negra” para o que deve ser evitado. “Humor negro” para o que é pesado. “Ovelha negra” para a vergonha da família. “Magia negra” como sinônimo de feitiçaria do mal. Nuvem negra, em prenúncio de tempestade. Negro, aqui, virou metáfora de tudo o que se rejeita. Como se a cor, por si só, carregasse culpa, erro, pecado.
Está nos dicionários antigos definindo “negro” como: sombrio, triste, tenebroso, sujo, inimigo, horrendo, macabro, asqueroso. O que isso ensina, senão o desprezo? Como esperar que uma criança negra cresça segura de si, se a própria língua que ela aprende associa sua cor a tudo o que há de ruim?
Em uma dinâmica descrevi a seguinte situação: “O meu filho (negro), brincando com o filho de um amigo (branco). Ambos ouvindo essas palavras ofensivas. Em determinado momento o menino branco pergunta ao pai: “Porque o outro menino é assim? O pai responde: “Porque ele é negro meu filho”. As crianças têm raciocínio lógico e, ouvindo tudo isso (mercado negro, nuvens negras, câmbio negro...), criou-se se instalou o problema.”
E não são só palavras isoladas. São expressões inteiras carregadas de preconceito, como: “serviço de preto”, “crioulo doido”, “nasceu com o pé na cozinha”, “nega maluca”, “cabelo de bombril”, “negro de alma branca”, “cabelo ruim”, “beleza exótica”, “mulata tipo exportação”, “inhaca”, entre tantas outras. Todas reforçam estigmas históricos e sociais. Todas diminuem. Todas doem.
O racismo linguístico estrutura imaginários. Faz com que o negro, além de ser alvo de exclusão econômica e social, carregue também a exclusão simbólica. Isso destrói autoestima, naturaliza a opressão e mantém viva a ideia — ainda que disfarçada — de que o branco é padrão, e o negro, exceção.
E o mais trágico é que muitos não percebem. Repetem essas expressões como se fossem inofensivas, sem maldade. Mas não se trata de “intenção”. Trata-se de efeito. E o efeito é devastador. São gerações crescendo com vergonha dos próprios traços, alisando cabelos ainda na infância, tentando se afastar da própria origem. É a criança negra que não se vê nos livros, que não se reconhece na boneca da loja, que não se sente parte da história contada na escola.
É possível mudar? Sim. Mas não de forma imediata. O racismo linguístico está entranhado no tecido social, nos costumes, na educação, nas relações afetivas, profissionais, escolares. Para combatê-lo, é preciso reconhecer sua existência e agir diretamente contra ele, começando por aquilo que ensinamos.
A escola tem papel central nessa transformação. É preciso, com urgência, cumprir o que determina a Lei 10.639/03, que obriga o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas salas de aula. Ensinar a verdade: que a África é berço de civilizações ricas, diversas, científicas e culturais; que o negro no Brasil resistiu, construiu, influenciou e segue criando. E, sobretudo, ensinar que a cor da pele não determina valor, caráter ou inteligência.
Observem que não é só papel da escola. É necessário revisar o que diz. Reaprender a falar. A linguagem molda pensamentos, comportamentos, afetos. Palavras constroem mundos. E o mundo que construímos até aqui exclui, fere e silencia. Já passou da hora de derrubar esse muro e levantar pontes.
A mudança começa quando alguém diz: “Esse cabelo é ruim”. E ouve, com firmeza e respeito: — Ruim é o seu preconceito. Meu cabelo é crespo. E é lindo.
Não basta parar de repetir. É preciso entender por que nunca deveríamos ter começado. Somos humanos e iguais, mas diferentes.
Eginaldo Honório é advogado, doutor Honoris Causa e conselheiro estadual da OAB/SP (eginaldo.honorio@gmail.com)