A escritora francesa Valérie Perrin escreveu o livro “Água fresca para as flores”, que narra a vida aparentemente inóspita de Violette, uma zeladora de cemitério que só tem por companhia as flores.
Essa profissão tende a desaparecer, se já não foi extinta, com a privatização das necrópoles e a despersonalização de protagonistas que a assepsia contemporânea engoliu.
Aqui mesmo, em Jundiaí, tínhamos uma personagem que a cidade provinciana da primeira metade do século passado conhecia. Ela se vestia de preto, roupas pesadas e saia comprida. Era a primeira a chegar à casa de alguém que tinha falecido.
Eram tempos de velório em casa. Duas funerárias eram mantidas por famílias tradicionais: Madeira da Fonseca e Rocha. Os estabelecimentos eram situados na rua do Rosário e na Vigário JJ Rodrigues. Dispunham de todos os aparatos para que a família velasse o seu morto.
Os móveis eram arrastados, formava-se um cenário. Todas as paredes revestidas de negro. Até na porta, um enorme tecido da mesma cor, qual tapeçaria, tinha uma grande cruz amarela. A peça era montada com as quatro velas permanentemente acesas. E havia o costume dos “boletins” noticiando a morte, o horário do enterro e com o nome de toda a família enlutada: cônjuge, filhos e netos.
O mistério da morte era de certa forma disfarçado com o ritual que incluía visitas posteriores à casa do morto, missas de sétimo e de trigésimo dia. E um luto que procurava equivaler à dor causada pela partida do ente querido.
A leitura do livro de Valérie Perrin traz a inevitável recordação de tudo isso. Força uma certa intromissão no segredo dos mortos e, principalmente, naquele que os vivos tentam esconder.
Confessa a autora, hoje com 57 anos e casada com Claude Lelouch, de 87, que sua intenção era “falar sobre a vida, a morte e aqueles que não estão mais aqui. A presença mística é mais forte do que a presença física, tudo isso em um cenário de investigação e questionamento sobre a própria identidade”.
A sucessiva perda de pessoas queridas faz mais presente a ideia de finitude. De que chegará o dia de nossa despedida deste mundo tão complexo, mas simultaneamente tão maravilhoso. Mundo que nos propiciou encontrar seres que nos seduziram, nos encantaram, nos tornaram devotos de uma afeição mágica e milagrosa.
Foi neste mundo em que chegamos sem pedir e do qual sairemos sem querer, que encontramos aquelas pessoas que nos formaram, nos ajudaram a ser nós mesmos e para as quais ajudamos a trazer nossa descendência. Aquele amor absoluto de quem não existia e que, ao chegar, já superlotou o nosso coração e nos inebriou de um sentimento indescritível. Como é que esses pequenos seres – filhos e netos – ocupam lugar tão especial, tão definitivo, tão eterno em nossa capacidade de amar?
Como é bom pensar que a partida é certa e inadiável. Para que os momentos que ainda restam sejam intensos. E para que nos recordemos que a morte já foi muito mais presente em nosso pensamento do que hoje. A própria visita ao cemitério se torna espaçada, rarefeita, adiada.
Tinha razão minha mãe, quando me pedia para levá-la em visita ao sepulcro de meu irmão e de meu pai, com passagem pelo de outros familiares e amigos queridos: - “Enquanto eu viver, estas visitas se repetirão. Depois disso, o túmulo da família ficará relegado...”.
O futuro ainda conviverá com cemitérios?
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)