OPINIÃO

Outra vez?


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“Pare o mundo que eu quero descer” — disse o cantor Silvio Brito em 1985, alertando que “estava tudo errado: conflito entre raças, tem que pagar para nascer, tem que pagar para morrer, multas, impostos, taxas para engordar um bando de ratos, violência que não para de aumentar...”.

Passados quase 40 anos, pouco mudou. Ou melhor, mudou para pior. Naquela época, não se falava tanto em feminicídios, intolerância religiosa, racismo escancarado e discriminação cotidiana. É possível que já existissem em larga escala, mas não eram tão divulgados quanto hoje — o que não significa que eram menos graves.

No campo da violência racial, os números atuais são assustadores. Apenas no estado de São Paulo, esses crimes cresceram impressionantes 968,5% nos últimos quatro anos. Foram mais de 4.600 casos registrados, dos quais cerca de 80% ocorreram na região metropolitana.

Assusta ou não?

Outro dado igualmente alarmante diz respeito à apuração desses crimes: menos de 10% chegam a gerar inquéritos, processos ou condenações. Na maior parte das vezes, os casos não passam do registro de boletim de ocorrência. Faltam investigações, busca da verdade e punições concretas. Esse ciclo de impunidade amplia a sensação de abandono, alimenta a violência e reforça a falsa ideia de que não há legislação suficiente — quando, na verdade, há sim leis eficazes, que precisam ser aplicadas com rigor.

É de conhecimento público que a violência no Brasil atinge de forma desproporcional pessoas negras.
Vejamos o recente e revoltante caso de um marceneiro paulista, jovem de 26 anos, que, ao sair do trabalho, foi confundido com um ladrão de motocicleta. Foi executado com um tiro na cabeça por um policial militar.

As imagens divulgadas mostram a brutalidade: o PM saca sua arma e dispara em uma rua movimentada, errando os supostos criminosos. Mas, ao se deparar com o jovem trabalhador — negro, desarmado —, atira sem hesitar. Um disparo fatal, direto na cabeça.

Mais absurdo ainda é ver a autoridade policial classificar o crime como homicídio culposo, aquele em que não há intenção de matar. Ora, se de fato não quisesse o resultado, o tiro teria sido dado em uma área não vital, apenas para conter, jamais para matar.

O agravante é que se trata de um profissional treinado, com formação técnica e psicológica. Um policial não pode atirar em via pública sem critério. Mas, na dúvida, atirou. Alegou “erro de percepção”. Coincidentemente — ou nem tanto —, a vítima era mais uma vez um homem negro.

É inaceitável que se tire a vida de alguém por conta de danos exclusivamente materiais. Um retrovisor quebrado, uma lanterna rachada, um tanque arranhado não justificam um assassinato. E, ainda assim, as pessoas parecem mais preocupadas com bens materiais do que com a vida humana.

Isso é imperdoável.

Infelizmente, é impossível falar sobre isso sem reconhecer que as maiores vítimas continuam sendo pessoas negras. E não se trata apenas da violência física. Há danos psicológicos irreversíveis, traumas profundos que marcam a existência dessas pessoas para sempre — apenas por causa da cor da pele.

Já disse muitas vezes e volto a repetir: pratique empatia. Coloque-se, ainda que por um instante, no lugar de quem sofre esse tipo de violência. Sinta, mesmo que de forma distante e passageira, o peso dessa dor.

E para aqueles que ainda insistem em chamar isso de “mimimi”, fica o desafio: você gostaria de viver na pele de uma pessoa negra? A resposta, quase sempre, é um silêncio sepulcral.

E qual a solução?

O primeiro passo é exigir a implementação da Lei 10.639/03, que torna obrigatória a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar. Precisamos ensinar, desde cedo, que a cor da pele é apenas adaptação ao meio, e que pessoas negras construíram grandes feitos em todas as áreas do conhecimento humano. Isso afasta de vez as definições pejorativas impostas historicamente a esse contingente tão importante da população.

Como costumo dizer: o ensino irregular não é  falha, é projeto. Quanto menos conhecimento, mais fácil é dominar.

Precisamos romper esse ciclo — urgente e coletivamente.

Eginaldo Honório é advogado, doutor Honoris Causa e conselheiro estadual da OAB/SP (eginaldo.honorio@gmail.com)

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