A moça conta sobre os últimos acontecimentos da vida de sua família. Conta com certo cuidado, pois algumas coisas, para ela, a inferiorizam. Fala, porém, talvez por desabafo ou para justificar se os fatos se vierem à tona. Como se precisasse dar satisfação a alguém. São sintomas dos julgamentos que pesaram sobre ela na necessidade de sobrevivência.
O pai que saiu para conhecê-la no hospital, sofreu acidente no percurso e faleceu. Naquela época, não era permitido acompanhar a esposa no parto, ainda mais em situação de pobreza. Gente que possuía dinheiro contado para pagar o aluguel do cômodo no cortiço e a caderneta da venda.
Poucos anos depois, foi a mãe. Pequenina ainda, juntou-se com alguns parentes que se propuseram a ajudar criá-la, também com condições precárias.
As crianças brincavam pelas ruas, subiam em árvores se houvesse frutas, apertavam campainhas e saíam correndo. Tinham medo ao ver algum veículo da polícia, que pudesse levá-las por fazerem algazarra pelas calçadas. Na escola passaram pouco. Tinham dificuldade de entendimento.
Não tinham brinquedos, bicicleta e nem vontade deles, pois já sabiam das impossibilidades e que a cidade se dividia entre casarões, habitações menores e corredores de cortiço. Nos corredores dos cortiços havia bonecas quebradas, carrinhos sem rodas... A comida era escassa. Às vezes, dava para acrescentar o que encontravam em lixo do bairro dos casarões ou dos restaurantes. Aproveitavam e traziam para elas e os demais. Era uma festa. Havia sabores que nem imaginavam o que fosse. Diarreia no dia seguinte não incomodava, a dificuldade estava no banheiro coletivo.
Foram crescendo assim e, aos poucos, ganhando as formas de adolescente. Foi com mocinhos do bairro dos casarões que perderam a virgindade. Tinham no máximo 12 ou 13 anos. Começaram a ser apalpadas por volta dos 11 anos em troca de bala ou brigadeiro. Quase nada compreendiam da vida e os mais velhos estavam cansados demais ao voltarem do trabalho pesado para lhes ouvir e orientar. Eram as quatro por elas mesmas.
Ao chegar à juventude, misturaram-se com os ambientes que exalavam promiscuidade sexual. Gostavam de cantar, dançar, arranjavam pequenos serviços como diaristas e a prostituição também veio como resposta as histórias que viveram atrás dos muros e das árvores dos casarões. Eram vistas como carne sem riscos ao serem usadas pelos jovens sem respeito, que viviam a lógica do pai: “Segurem suas cabritas que meu bode está solto”.
Respeito pelo outro faz parte da formação do caráter e não do que se possui.
Enquanto a moça falava sobre fatos tristes de sua família, com dois presos, envolvidos em drogas, veio-me a sua história toda. Desejava para eles uma vida diferente da que ela teve, sem convivência com o submundo. A maneira de falar e justificar, sem dúvida fazem parte de sua sensação de fracasso. Como foi difícil chegar até onde se encontra e ser uma mulher de tanta fé em Deus e na intercessão de Nossa Senhora Aparecida, mas as decepções...
O fracasso, no entanto, não é dela, mas da sociedade que não a enxergou desde pequenina; dos moradores dos casarões que a usaram; dos que, na escola, não creram que fosse capaz de aprender; da falta de acolhimento e paciência com os mais pobres dos pobres.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)