A diplomacia é uma das carreiras públicas mais sofisticadas. O Brasil tem uma tradição de mais do que adequada formação de seus quadros, feita pelo Itamaraty, preservada a denominação do verdadeiro palácio que hospedava o Ministério das Relações Exteriores do Brasil. É um preparo esmerado, cujo resultado é um conjunto de diplomatas muito erudito, muito técnico, até muito sofisticado.
A tradição diplomática tupiniquim é um dos únicos motivos de orgulho da República. Seus profissionais são de primeiríssima qualidade e, ressalvado algum raro equívoco perpetrado por um transitório plantonista do Planalto, não há como errar na indicação do Ministro das Relações Exteriores.
A História tem confirmado a excelência desse pessoal. Personalidades muito distinguidas têm servido ao Brasil em postos no exterior e muitos episódios dão conta do êxito da grande Escola de Relações Exteriores mantida pelo Itamaraty.
Certa feita, Medeiros e Albuquerque, cujo nome completo era José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (1867-1934), homem público também jornalista, professor, político, poeta, contista, orador, romancista, literato, teatrólogo, ensaísta e memorialista brasileiro, foi a Washington, onde o Embaixador do Brasil era Domício da Gama, na verdade Domício Afonso Forneiro (1862-1925), outro famoso jornalista, diplomata e escritor brasileiro.
Assim que chegou à capital dos Estados Unidos, Medeiros e Albuquerque foi visitar o amigo na Embaixada do Brasil. Ali encontrou o Embaixador excessivamente solene em seu traje de cerimônia. Casaca escura, colete, gravata preta sobre o peito duro da camisa. Nada obstante, o calor em Washington era canicular e sacrificava todos os viventes.
Medeiros estranhou que Domício não relaxasse e viesse a adotar traje menos requintado. Afinal, imaginava qual seria a situação do corpo do amigo sob aquela armadura.
Todavia, Domício era uma dessas figuras formalistas, submetidas com prazer masoquista ao desconforto no uso de traje pesado e incômodo a uma temperatura tropical insuportável. Pessoas que existem na vida real, como teria sido o intelectual francês Alfred de Vigny, de quem Jules Sandeau afirmou que “não dava intimidade a ninguém, nem sequer a si próprio”...
Conversa vai, conversa vem, os amigos se entretêm ouvindo relatos sobre a situação brasileira, da qual Domício estava ausente, desde que assumira a representação do País junto à terra de Tio Sam.
Houve a recordação de outros companheiros e o diálogo não tinha fim. Até que, chegada a hora do almoço, Medeiros quis ir embora, mas Domício fez questão de tê-lo à mesa como seu convidado.
Medeiros já estava sem condições de permanecer sob aquele calor. Passava continuamente o lenço à testa e pescoço, tanto que já o ensopara. Domício, calmo e impassível, continuava entalado nos trajes severos.
Encaminharam-se para a mesa. Antes de se sentarem, observou o Embaixador:
- “Você sabe, amigo Medeiros e Albuquerque, ser a Embaixada um lugar cerimonioso, em que se não podem preterir certas formalidades”. Mas em sua homenagem, permito que você – excepcionalmente – tire o paletó, ponha-se em mangas de camisa”. E continuou: - “Vou fazer o mesmo, porque sinto que posso entrar em combustão dentro em breve...”
As praxes diplomáticas já arrefeceram nestes tempos em que a grosseria expulsa a polidez e os bons modos e se instaura a brutalidade dos selvagens, muitas vezes a sugerir que o projeto humano parece destinado ao fracasso.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)