Ah, memórias da infância! Tenho tantas. Uma fase de descobertas e encantos. Existem algumas dores também. Viver sujeita até pequeninos a angústias. As minhas foram proporcionais à fase. Na maternidade, fiquei conhecida como “Manhosa”. Em certos momentos, para curar uma decepção, ganhava um pacote de bala de goma. Duas de minhas bonecas tenho até hoje. Com certeza as lembranças da infância influem em todas as fases da vida. Nelas se aprende inúmeras coisas. Vêm-me agora as hortênsias azuis e as violetas lilases. Uma mistura de beleza com céu e melancolia, porém reflito sobre as infâncias doloridas demais!
A menina de quatro anos me chamou do outro lado da rua. Dizia: “Salva papai”. Fui até onde morava. O pai caído no chão com a boca espumando. A esposa me explicou que ele descobrira em meio aos tijolos - a parede não é rebocada -, o veneno de rato e ingeriu. A ambulância chegou logo e ele teve alta após quatro dias. Sequelas ficaram. Penso o quanto esse fato, como outros, influirão no desenvolvimento da menina, em acréscimo a outros medos de desgraças prováveis.
Certa vez, uma menina de oito anos me mostrou hematomas no braço. Imaginei que tivesse caído. Explicou-me. Precisava desabafar. A mãe se encontrava muito infeliz. O casamento não dera certo novamente, assim como foi com o pai dela. Mais uma gravidez sem o companheiro para compartilhar. Teve uma crise de choro e, em seguida, pegou a navalha que o indivíduo esquecera na casa e a colocou na altura do pescoço. Arrancou da mão da mãe e correu para a casa da avó. Os hematomas foram decorrentes de a segurarem pelo braço porque desejava entrar junto no pronto-socorro.
Os olhos verdes do menino e as unhas roídas até sangrar chamavam a atenção. Tinha nove anos quando o conheci. Convivemos em sala de aula durante um ano. Seus olhos diziam mais que a fala. Naquela época morava com o tio. Estava com seis anos quando o pai, que trabalhava no período noturno, descobriu que a esposa o traía. Retornou na madrugada, atirou nos dois e fugiu. Ele ficou sozinho com os irmãos menores e o cadáver da mãe e do amante. Carregava sentimentos confusos. Visitava o pai aos domingos na cadeia e ele lhe falava sobre planos para o futuro. Pretendeu perguntar se um deles seria arrumar o túmulo da mãe, contudo lhe faltou coragem.
Entendo que esses acontecimentos dolorosos irão se sobrepor a brincadeiras, brinquedos, cantigas e coisas próprias da infância.
Um dia desses ouvi versos de um rap mais ou menos assim: “É que eu não era ruim, mas o mundo me fez assim. Julga, mas não vê o mundo que eu vejo. Aprendi o segredo da vida. O que impõe respeito é o dinheiro e o poder”. Desconheço o compositor e o cantor.
As três crianças, às quais me refiro, são ou eram empobrecidas.
Penso no que aconteceu com o menino de olhos verdes e unhas roídas. Naquela época já era apontado como o filho do assassino. Talvez cante esse rap “...É que eu não era ruim, o mundo me fez assim. Julga, mas não vê o mundo que eu vejo...”
Realidade: julga-se sem saber do mundo que não é o nosso e arruína a tantos.
Continuamos julgando e apontando o dedo na presunção de que somos melhores que os demais e tão pouco fazemos pelos empobrecidos.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)