OPINIÃO

Caminho de pedras


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Romance de Rachel de Queiroz (1910/2003), “Caminho de pedras” aparece em 1937 e figura como uma das obras mais politizadas da escritora. Sob o totalitarismo do Estado Novo getulista, o livro recria a atmosfera asfixiante da repressão política, assim como mostra um esfacelado, dividido e clandestino partido de oposição (a “organização”, como chama o narrador). A tal “organização” refere-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, e na década de 1930, na clandestinidade (lembre-se o leitor de que em 1935, uma canhestra e mal planejada tentativa de golpe – a Intentona Comunista – estimulou por parte do governo uma caça às bruxas e provocou o esfacelamento do partido).

Em “Caminho de pedras”, a ação se passa em Fortaleza, onde está Roberto, jornalista militante que partiu do Rio de Janeiro para a capital cearense a fim de reorganizar um núcleo político da organização destroçada pela repressão varguista. Roberto depara-se com um partido fragmentado, com pouca gente e muita divisão (na primeira reunião, com apenas oito militantes, estabelece-se um bate-boca interminável de quem manda em quem...). Ao mostrar um partido cindido, longe da perfeição vendida pela propaganda de seus principais dirigentes, Rachel de Queiroz arruma encrenca com a militância comunista.

A escritora fora ligada ao PCB, mas desentendera-se com a direção do partido quando publicou, em 1932, o romance “João Miguel”. Nesse livro, o protagonista do título é um camponês que, embriagado numa festa, mata um homem. O partido palpita que o livro deveria sofrer alterações. A autora discorda, publica a obra sem cortes e migra do PCB para um núcleo trotskista em São Paulo, reunido em torno do crítico de artes plásticas Mário Pedrosa. No “Caminho de pedras”, um tema central é o da dificuldade de entendimento, nos movimentos proletários, do intelectual engajado com o proletário. As cisões são evidentes. Bem longe da fantasia de colegas de ofício, como o Jorge Amado de “Capitães da areia”, em cujo romance não aparecem rachaduras na organização, e no qual tudo caminha de maneira harmônica para o futuro ideal e revolucionário.

No livro de Rachel de Queiroz, outro tema importante é o do protagonismo feminino. Ainda que o livro comece com a chegada de Roberto à capital do Ceará, é em torno de uma mulher, Noemi, que a história se desenrola. Moça pobre, casada com João Jaques, com quem tem um filho pequeno, Guri, Noemi trabalha num laboratório fotográfico, retocando imagens. João Jaques é militante e leva Roberto para frequentar sua casa. O casamento não anda bem e as afinidades entre Noemi e Roberto aproximam os dois. O que é isso, companheiro? Um camarada talarico! Noemi sente-se atraída pelo recém-chegado, mas pensa na família que quer manter. A trama se agudiza. As inquietações de Noemi avolumam-se ao mesmo tempo que a saúde de Guri sofre abalos.

A linguagem é enxuta. Um dos grandes méritos da romancista é o de criar diálogos bem lapidados, coloquiais e afiadíssimos. Dona Rachel domina com maestria o ofício e faz de seu “Caminho de pedras” romance para se ler e reler.            

Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)

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