Tudo me interessa e a tudo procuro prestar atenção. Falo em termos de leitura. Sei que não vou conseguir ler todos os livros que possuo. Fico pensando se, ante o descaso que os livros têm merecido da legião crescente dos que não leem, se terei coragem de fazer como o personagem do conto "A biblioteca", de Lima Barreto.
O velho Fausto Fernandes Carregal colecionou livros durante toda a sua vida. Acreditava na importância decisiva dos livros na expressão e nos fundamentos da vida. A contribuição deles na formação do caráter das pessoas é inimitável. É emocionante conviver com os livros, o prazer de tentar compreendê-los. Nem sempre é possível transferir para filhos e netos o amor pela preciosa biblioteca de Fernandes Carregal. Diante disso, ele, velho e solitário, resolve queimar, volume por volume, aquela herança que vinha do pai e do avô, gente ilustre da Academia Real Militar fundada no Rio de Janeiro em 1810, pelo Conde de Linhares, ministro de Dom João VI.
Por enquanto ainda me distraio apanhando ao léu dois ou três livros ainda não lidos e me embrenho no conteúdo deles. Nunca deixo um livro pela metade. O que começo, termino. E tenho boas surpresas. Quase sempre eles me inspiram a traduzir sentimentos nestas crônicas semanais que perpetro sem a intenção de conquistar leitores. Sinto que escrevemos para nós mesmos. Para tentar colocar as ideias em ordem.
Os livros que escrevi, em sua maior parte - na verdade, quase a totalidade deles - são voltados a temas técnicos. Ética, Magistratura, Filosofia, formação de profissionais das áreas jurídicas. Quando tento fazer memorialística, pareço ingressar num gênero híbrido, mescla de ensaio e relato ficcional. Pois a minha apreensão da realidade pode não coincidir com a realidade mesma. Sigo a "índole dos diletantes", que Gilberto Freyre desenvolveu e da qual extraio que o diletantismo se traduz numa atitude livre e desinteressada da realidade. Para ele, e eu o acompanho nisso, pode valer mais que o dogmatismo das formulações acadêmicas.
É também o que tento mostrar para os pesquisadores que se entregam à minha orientação na pós-graduação. De que adianta a elaboração de dissertações e teses que exploram infinitos aspectos da mesmice? Quem é que de fato lê as teses e dissertações?
A resposta é fácil. Aquele que as elaborou. O revisor, hoje uma prática recorrente, para compatibilizar a redação inicial com as exigências da ABNT, a Associação Brasileira de Normas Técnicas. A banca de arguição: orientador e dois outros membros para o Mestrado, orientador e quatro ou cinco outros membros para o Doutorado.
As luxuosas encadernações ornamentarão as bibliotecas da Universidade e o título adornará o Currículo Lattes do Mestre ou Doutor. Ninguém mais terá a curiosidade de ler, salvo se a dissertação ou tese incursionar por um tema impactante, que altere a realidade circundante.
Por tudo isso, continuo no meu diletantismo, aprendiz de leitura e de escrita, que pretende perseverar no aprendizado até quando Deus permitir. Dia em que nada se aprende é dia perdido. E o tempo é o único insumo insuscetível de ser adquirido, comprado, emprestado, trocado. É implacável o seu ponteiro: incessante e certo. Aproveitemos cada instante!
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)