Antes das cinzas, tem o fogo que arde, queima e transmuta os estados, sejam lá quais forem eles. Muitas são as definições e as simbologias sobre as cinzas, depende de cada cultura. Mas, muitas delas tem um fator em comum – transmutação e renascimento em outra condição diferente da inicial.
As cinzas, em diversas tradições religiosas, servem como um poderoso símbolo da condição humana, enfatizando a mortalidade, a necessidade de arrependimento e a esperança de renovação espiritual. Seja através de rituais de luto, práticas ascéticas ou mitos de renascimento, elas nos convidam a refletir sobre a fragilidade da vida e a busca por uma conexão mais profunda com o sagrado.
No Brasil, 86,8% da população é cristã; 64,6% deles, católicos e 22,2% evangélicos, segundo dados do IBGE, o que reflete na tradição da utilização das cinzas. A Quarta-feira de Cinzas marca o início da Quaresma, especialmente para os cristãos católicos e anglicanos. Os fiéis recebem uma cruz de cinzas na testa, acompanhada das palavras: "Lembra-te de que és pó e ao pó voltarás", símbolo da mortalidade humana e da necessidade de arrependimento e reflexão durante o período quaresmal.
Outra religião que aplica a cinza na testa e em outras partes do corpo como símbolo de purificação e proteção espiritual é o hinduísmo. As cinzas são associadas ao deus Shiva, frequentemente retratado coberto por elas, como marca de desapego e renúncia ao mundo material. Representa a transitoriedade da vida e a importância de se buscar o conhecimento espiritual.
No budismo, as cinzas lembram a impermanência da vida e a importância de buscar a iluminação. Nas tradições tibetanas, as cinzas dos corpos cremados de mestres espirituais são colocadas em estatuetas ou stupas (monumentos religiosos), servindo como relíquias sagradas para simbolizar a continuidade do ensinamento e a presença espiritual do mestre. Já para o islamismo, a prática de cremação é geralmente proibida, sendo o sepultamento o método prescrito para lidar com os mortos. Para eles, deve-se respeitar o corpo que retornará a terra. No judaísmo, as cinzas têm um papel simbólico em rituais de luto e arrependimento.
Nas culturas indígenas as cinzas são usadas em rituais de purificação, proteção e comunicação com os ancestrais. Em algumas tribos africanas, as cinzas são espalhadas em cerimônias para afastar espíritos malignos e purificar a comunidade. Para os nativos americanos, as cinzas das fogueiras cerimoniais são consideradas sagradas e empregadas em rituais de cura.
Carl Gustav Jung, com abordagem na psicologia analítica afirma que o conceito da “Sombra” é definido como um dos aspectos reprimidos da personalidade. Para ele, o simbolismo das cinzas pode estar relacionado ao confronto com lado “Sombra” que todos temos. Uma experiência que a princípio pode parecer destrutiva e dolorosa, mas que leva à consciência ampliada e ao autoconhecimento. São um lembrete da transitoriedade da identidade e do potencial de transformação que existe em cada indivíduo.
Em qualquer uma das abordagens, as cinzas carregam um simbolismo rico e multifacetado provocando uma reflexão sobre quem somos e para onde vamos. A verdadeira jornada do herói cotidiano é quando permitimos o pensamento crítico, a revalidação de atitudes, o banimento daquelas que não servem, dando espaço para que o novo nasça.
Rosângela Portela é jornalista, mentora e facilitadora
(rosangela.portela@consultoriadiniz.com.br)