OPINIÃO

Deus viu que tudo era muito bom!


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Iniciamos neste mês de março nossa caminhada anual de conversão quaresmal. Trata-se de um tempo de retiro no qual a Igreja convida seus filhos e filhas a intensificarem a vida de oração, de penitência e de caridade. A Quaresma é o momento fecundo de derramamento da graça, onde o espírito humano é convocado a se recolher para investigar as causas de seus vícios e como derrotá-los, relembrando a luta de Jesus contra Satanás, nos seus quarenta dias de deserto. Neste ano, novamente, unidos à Igreja do Brasil, que há mais de sessenta anos promove a Campanha da Fraternidade, somos chamados a glorificar a Deus pela Criação, nossa Casa Comum e a promovermos um profundo debate sobre as causas da destruição ambiental. Trata-se de reacender o apelo de nosso querido Papa Francisco, manifestado há dez anos, na Encíclica Laudato Sí e mais recentemente na Exortação Apostólica Laudate Deum, para uma conversão ecológica.

Com a exclamação que brota do livro de Gênesis: “Deus viu que tudo era bom!” (Gn 1,31), a Campanha da Fraternidade, promovida pela CNBB em todas as igrejas do país, busca conclamar os fieis a um olhar de compaixão para nossa Casa Comum, a Terra. O Criador abençoou a sua criação com um olhar de exclamação e de alegria. Nosso planeta, onde partilhamos a experiência de vida com tantos seres vivos, no entanto, padece. 

Vitimada pela ambição humana e pelo pecado que se enraízam nas estruturas de dominação política e econômicas de nosso tempo, a natureza geme as dores de parto de uma nova postura diante das emergências climáticas que se impõem. Como nos lembra Francisco: “a violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que ‘geme e sofre as dores do parto’ [Rm 8,22]” (Laudato Sí, 2).

Nesse sentido, a Campanha da Fraternidade evoca em nós uma atitude de conversão ecológica. É próprio do tempo quaresmal o convite à conversão e ao arrependimento. A penitência que fazemos, o jejum e a abstinência aos quais somos convidados nesse período servem para mitigar em nós os maus desejos alimentados pelos vícios. Trata-se de um combate que nos recorda a longa jornada de Jesus no deserto, tentado por Satanás a abandonar sua missão como Filho de Deus e a entregar-se ao prazer e à vaidade dos homens. Na atitude de recusar a satisfação do instante, o jejum e a abstinência dos prazeres da carne nos apontam o caminho de algo ainda maior: a conversão a um modo de vida e a padrões de consumo que se mostrem revestidos e comprometidos com uma preocupação com o ambiente. Substituir a tentação do supérfluo pela alegria da caridade. Trata-se de uma verdadeira conversão. Aquela que não atinge apenas as dimensões metafísicas de nossa espiritualidade, mas que integra a nossa relação com a Casa Comum, com os recursos naturais e o modo como são produzidos, com a plena integração entre as necessidades humanas e a consciência de que o consumo e a exploração sem medidas podem nos afetar, bem como as gerações futuras.

Passados dez anos da publicação de Laudato Sí, muito pouco foi feito. As metas de redução de emissão de gases propostas pelos acordos de cooperação para o clima praticamente foram abandonadas. Como agravante, a diminuição acelerada na utilização de combustíveis fósseis não aconteceu. Além disso, a intensificação no uso de derivados de petróleo, como o plástico, fez com que os níveis de poluição e degradação do ambiente alcançassem números alarmantes. Junto a isso, presenciamos recentemente os efeitos devastadores das consequências do aquecimento global, que resultam em inundações, secas e ondas de calor no Brasil, com impactos severos nas safras e maior preço cobrado aos mais empobrecidos. Não obstante, discursos políticos totalitários e negacionistas contribuem para a disseminação de notícias falsas, promovendo uma sensação de que o colapso do clima não existe e invisibilizando as consequências, sobretudo quando essas se revelam prejudiciais aos mais pobres.

Neste ano jubilar, onde a Igreja nos convida a celebrar o perdão e o retorno ao amor misericordioso de Deus, a Campanha da Fraternidade nos ensina a aprender com o Evangelho da Criação, valorizando a dimensão trinitária da fé cristã e recuperando o horizonte bíblico da aliança universal que envolve todas as criaturas (Gn 8-9). Não estamos sós. Nossa fé é uma experiência viva e fraterna que nos lança a uma comunhão integral com os outros humanos e com todos os seres vivos, afetados pela indiscriminada e ambiciosa empreitada da ganância pelo lucro sem medidas. O Jubileu também pode ser o jubileu da nossa Casa Comum, ao qual devemos nos converter com um redobrado amor, libertando-a das correntes da exploração sem medidas.

Desejo que a Campanha da Fraternidade nos mova na direção de uma conversão sincera, própria do espírito quaresmal. Que nossas práticas de penitência nos ajudem a recusarmos uma aparência triste e fingida como a dos fariseus, que mostram seus jejuns com rostos maquiados de vaidade. Que nosso silêncio nos ajude a reconhecer a gravidade do problema e nos dê coragem para encarar os desafios do tempo presente, com moderação em nossos hábitos de consumo, recusando a tentação de uma vida supérflua. Que a proximidade com os irmãos e irmãs, alimentada pela caridade, nos ajude a nos sentirmos pertencentes à única família humana, ameaçada pelo agravamento da crise ambiental. Que promovamos em nossas comunidades fecundos momentos de reflexão e oração, para que possamos criar, unidos, uma consciência de filhos e filhas de um Pai que tudo criou e se pôs a exclamar que tudo era bom!

Que a travessia quaresmal nos faça vislumbrar uma Páscoa repleta da esperança de um novo tempo, re-significada pelo Deus da Vida, e ressuscitada no compromisso daqueles que resistem, apesar de todo vento contrário.

Boa Quaresma a todos!

Dom Arnaldo Carvalheiro Neto é Bispo Diocesano de Jundiaí

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