
Fico imaginando o choque de alguns jovens ao assistirem a “Ainda Estou Aqui”. Brasileiros nascidos após os anos 2000 e que pouco ou nada sabiam sobre a ditadura militar. Como reagiram, em suas poltronas, ao verem um pai arrancado de sua família, em plena luz do dia, para depois ser torturado e morto? Quando um filme como este, baseado em fatos verdadeiros, torna-se sucesso de bilheteria e fenômeno cultural no país e mesmo no mundo, com plateias emocionadas e chuva de aplausos, algum abalo sísmico é causado.
Você pode gostar ou não do filme sobre a família Paiva. No campo da arte, a argumentação a favor ou contra é sempre possível e válida. O que não é mais possível negar é a força da obra de Walter Salles, com uma história que começa despretensiosa, na família, na vida cotidiana do Rio de Janeiro dos anos 1970, sob a aparência de que nada acontece quando tudo acontece. Que não demora a impor novas camadas, a converter a casa feliz e ensolarada em um lugar escuro no qual outro Brasil - o dos porões - dá as caras.
“Ainda Estou Aqui” é o mais perto que o Brasil já chegou do Oscar de filme internacional. Na cerimônia que ocorre hoje (2), é nessa categoria que temos as melhores chances. Logo em um fim de semana de Carnaval. Se ganharmos, a festa ficará ainda maior, a alegria tomará conta das ruas. De quebra, o Brasil ainda concorre nas categorias de melhor atriz para Fernanda Torres e melhor filme, feito inédito a uma produção latino americana.
Para Torres, a batalha é árdua e sua categoria ainda é uma dúvida: com ela concorrem Mikey Madison por “Anora” e a hoje favorita Demi Moore por “A Substância”. Como se viu ao longo de décadas, Oscar nem sempre é sobre qualidade. O momento e o discurso de uma carreira, tal como o “espírito da época”, contam para a conquista da estatueta. Madison e Moore são menores que Fernanda. No entanto, estão em filmes que caíram nas graças dos votantes e, no caso de Moore, há o discurso da carreira, da bela mulher escamoteada pela indústria, um pouco o reflexo de sua própria personagem.
“Anora” pega onda em um bom momento. Já ganhou prêmios nos sindicatos dos diretores e produtores, o que o fez sair na frente. Em um ano cercado por dúvidas, sem um franco favorito, o filme de Sean Baker encara produções mais robustas e com a tal “cara de Oscar”, como “Conclave”, que venceu o prêmio de elenco no SAG, e “O Brutalista”, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme em drama e diretor. Com aproximadamente dez mil votantes, a Academia de Hollywood terá de escolher entre um filme sobre uma prostituta que vai do sonho à desilusão, um sobre o processo de eleição de um novo papa e um sobre um arquiteto que desembarca nos Estados Unidos após sobreviver ao Holocausto. Dificilmente outro filme deve levar senão um desses três. Nem mesmo “Um Completo Desconhecido”, sobre Bob Dylan, parece ter força. Se ganhar melhor ator (Timothée Chalamet) será um feito e tanto - e um prêmio injusto na edição que tem Ralph Fiennes e Adrien Brody. É a típica cinebiografia feita para agradar fãs e o público em geral.
E se ainda se deixa seduzir por fórmulas fáceis, por outro lado a Academia também se abre ao inesperado: além do nosso “Ainda Estou Aqui”, seus membros reservaram outra surpresa e escolheram entre os dez melhores do ano o belo “O Reformatório Nickel”, em que dois jovens negros compartilham experiências e passam por maus momentos em uma instituição nos Estados Unidos fortemente segregados dos anos 1960. O filme de RaMell Ross é um forte exercício de olhar, feito inteiro com câmera subjetiva.
Todo ano o Oscar também tem seus abacaxis. Não raro mais de um. Nesta edição, nada explica 13 indicações para o desagradável “Emilia Perez”, o principal concorrente do Brasil em filme internacional. Pior do que perder seria perder para um filme como esse, que não se dá bem nem como musical, nem como história de denúncia, nem como pretensa fábula - menos ainda quando tenta fundir tudo isso. Difícil acreditar que chegou tão longe. O que nos faz pensar se o Oscar realmente importa quando sabemos que, por trás da festa, existem campanhas milionárias para impulsionar possíveis nomeados. Estar lá - independente da vitória - é uma vitrine e tanto. Arte é outra coisa. É bom não se deixar enganar.