OPINIÃO

As meninas de dona Lygia


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Uau! Que romance! Falo de “As meninas”, de Lygia Fagundes Telles, livro que por dever de ofício precisei reler (uma das melhores coisas do magistério é a necessidade de ver e rever autores e obras). Dona Lygia é das melhores escritoras da língua portuguesa. “As meninas” apareceu em 1973, durante a ditadura militar. O tirano de plantão chamava-se Garrastazu Médici e o regime estava para lá de fechado, perseguindo e eliminando opositores. A autora situou seu romance em meados de 1969, na cidade de São Paulo. São três amigas, na faixa dos dezenove ou vinte anos, universitárias, vivendo em pensionato administrado por freiras. Lorena Vaz Leme, de família paulista quatrocentona, estudante de Direito; Lia de Melo Schultz, baiana de classe média, filha de alemão e brasileira, estudante de Psicologia, o mesmo curso de Ana Clara Conceição, garota de origem humilde.

A faculdade de Lorena está em greve, Lia perdeu o ano por faltas, Ana trancou matrícula. Mulheres muito diferentes, unidas por amizade que dá espaço para críticas ácidas entre elas, mas também para solidariedade extrema. A belíssima Ana Clara, modelo de revista, com mania de grandeza, é dependente química. Bebe muito e injeta demais. Namora um certo Max, traficante bonitão, herdeiro de família tradicional. A engajada Lia adora um discurso, panfleta adoidado e milita em grupo de oposição. A organizada e metódica Lorena vive um amor platônico por M.N., médico casado, sujeito bem mais velho do que a menina. Boa parte da história se passa no quarto de Lorena, no pensionato, onde muitos acabam por aportar.
 
Como os colegas de faculdade Guga e Fabrício e as freiras do pensionato, cada qual com suas peculiaridades. A prosa da escritora fascina. Como as conversas entre as amigas, em que a atenção do leitor é testada para reconhecer quem diz o quê. As falas se distinguem pelos cacoetes linguísticos (o “querida”, de Lorena, o “entende”, de Lia...). Ana Turva (apelido maldoso criado por Lorena), boa parte do tempo fora do ar, embaralha assuntos e observações. Traz sempre à tona seu passado de menina abusada na infância, filha de mãe maltratada, pai desconhecido e “padrastos” agressivos. 

Irmã Alix, diretora do pensionato, se preocupa com suas hóspedes. Discreta, revela-se determinada e corajosa. De uma conversa com Lia, aparece trecho dos mais impactantes: a descrição de tortura sofrida por estudante nos porões da ditadura (para sorte dos leitores, esse cochilo da estúpida censura da época possibilitou a publicação integral do romance).As cenas criadas beiram a perfeição. Nada sobra, tudo se encaixa. Haja competência para harmonizar (ou melhor, para fazer conviver) gente muito diferente, com escolhas tão díspares, em época asfixiante. O desfecho surpreende. Mas já distribuí spoilers em excesso. 

Quer ler uma obra magistral? Avance pelas páginas de “As meninas”, de dona Lygia. Essa paulistana formada em Direito e em Educação Física pela Universidade de São Paulo, procuradora do Estado, imortal da Academia Brasileira de Letras e escritora laureada com o Prêmio Camões. Talento de sobra.  
Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)

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