OPINIÃO

No rastro da felicidade


| Tempo de leitura: 3 min

Na calçada, ao sair da missa, primeiro dia deste ano, observei, à certa distância, um moço que acabara de receber algo em um portão. Seguíamos em direção oposta, contudo haveria um ponto de encontro. Mais próximos, percebi que se tratava de alguém das beiradas da cidade e, nas beiradas, é mais fácil perder o equilíbrio, cair, se machucar e mergulhar definitivamente na morte. Além das bordas, existe farelo de gente a quem foi negado um caminho de luz.

Observou-me enquanto vinha e eu a ele. Tenho comigo que desviar olhos dos olhos é covardia ou preconceito. Quem me conhece sabe que não reparo no que existe de material em meu entorno, mas vida vejo de longe. Ao nos alcançarmos, parou e me mostrou o que tinha nas mãos: algo para se alimentar embrulhado em papel alumínio e uma nota de dez reais. Em princípio imaginei que me pediria algo. Na verdade, seu desejo era somente conversar. Procura rastros da felicidade.  

Tocou a campainha e a pessoa, que o viu, lhe entregou dez reais. De imediato, disse-me que não desejava dinheiro. Estava com fome e buscava algo para comer. A pessoa entrou de volta e reapareceu com o lanche. Quis lhe devolver a cédula, mas ela insistiu que ficasse com os dois.

A juventude já lhe fora. Aparentava uns 45 anos. Nunca se sabe, pois esse povo sofrido, que vaga nas noites na colheita do nada, de pele sem brilho e olhar enfermo, possui um aspecto envelhecido.

Levantava a nota e me falava: “Dez reais! Que vou fazer com dez reais? A senhora imagina. A senhora deve saber. Sigo em frente, paro no bar e bebo. Ou sigo um pouco depois e compro droga. Eu não quero mais isso, senhora. Que vou fazer com os dez reais? Se eu uso bebida ou droga, paro em um canto qualquer e, ao acordar, penso em pedir dinheiro para mais, mais e mais! Isso não é vida. Quero sair disso. Veja aqui no meu braço, no meio dos desenhos, o nome da minha filha. Ela é tão bonita! Tem cinco anos. Mora com a mãe dela, depois do ponto de droga. Não consigo chegar até lá. Tem uma coisa por dentro que me chama para o balcão onde tem cachaça e tem a biqueira por perto. Paro por lá.”

Muita dor por dentro transbordava dele, junto com uma sensação de fracasso.

Perguntei-lhe se já tentara um tratamento. Respondeu que sim, mas que aquilo tem por dentro, que leva para lugar errado, possui uma força que ele não aguenta. Questionei se fazia tempo. Bastante, desde que não aguentou mais ver a mãe apanhar do padrasto e saiu pelo mundo. Estudou até o quarto ano.

E se ele comprasse dez reais em doces para a filha? Silenciou e chorou.

Após uma meia hora de conversa, em que mais ouvi do que me expressei, agradeceu por escutá-lo. Era somente isso que desejava para o primeiro dia do ano: alguma coisa para comer e alguém que o ouvisse, sem ficar lhe dando lição de moral. 

Na minha cabeça, as três pistas que assinalara, Dom Vicente Costa, nosso querido Bispo Emérito, para termos um ano feliz: tratar o próximo com a dignidade que lhe é própria; constatar que somos todos filhos de Deus e, portanto, irmãos uns dos outros e guardar e meditar, como Maria, sobre os sinais do Céu.  

No coração, a mãe biológica que não fui, gostaria de lhe cantar cantigas de ninar.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

Comentários

Comentários