Foi trazida pelas mãos de uma sobrinha querida. O apartamento em São Paulo já não tinha lugar para as suas travessuras. Em casa, havia um bom terraço, onde poderia ser mais manhosa. Uma linda cachorrinha chow chow.
De início, ficou indecisa sem saber quem seria seu dono. Com os dias fui me aproximando. Passei a mão por sobre seus pelos macios, olhou-me profundamente Encostei sua cabeça no meu peito. Entendeu que não tinha escolha. Tinha que me aceitar. Nos primeiros dias, eu ficava longe dela, porém ao passar de um pequeno tempo, eu já não a largava.
Formamos uma agradável parceria. E foram mais de vinte anos de um convívio muito afável.
Caminhava comigo lado a lado, com muita graça. Submisso, seguia seus passos. Passear, brincar, correr, farejar entre outras atividades a faziam feliz. Era um amor em movimento.
O amor por ela é muito mais real do que as pessoas imaginam, e não existe maneira melhor de expressar isso do que algumas palavras que aqui escrevo.
Todos os dias ao acordar, abria a janela da sacada do quarto e a chamava. Bela surgia latindo, sorrindo com seus olhos de gueixa.
No fundo do meu quintal tenho plantadas algumas árvores. No pé de uma delas, uma cerejeira, há um pequeno banco rústico. Ali muitas vezes, com o cantar do bem-te-vi e o alvoroço das abelhas jataí, me encontro com minhas confidências mais íntimas e tento enfrentar meus fantasmas.
Bela se aproximava. Ela sempre exigiu o aconchego, o carinho das mãos, o bate palmas da alegria. Por incrível que se possa sentir, parecia entender, quando somos vítimas das ciladas da vida.
Na perda de meu pai, de minha mãe foi tão solidária. Não disputou espaço, compreendeu minha tristeza. Acomodava-se bem perto de mim, com as patinhas estendidas a sua frente e me olhava com um carinho meigo, entendendo minha dor. Nada pedia. Percebia meu pesar.
Ao longo destes anos foi sempre assim. Eu aprendi a cuidar dela. Ela a lidar comigo. Sentia-se o perfume do cheiro da lealdade.
Devotar meu carinho foi a resposta que lhe dei.
Quantas vezes invadia nossa casa, na certeza de receber o afago de todos familiares. Distribuía alegria, mais que alegria, encantamento. Mais que encantamento a doçura da companhia.
Nesta quinta-feira, como de costume, abri a janela da sacada do quarto e a chamei pelo nome. Não apareceu. Tremi pela ausência daquele sorriso e pela falta daqueles olhos de gueixa. Desci até o terraço. A apreensão doía na alma. Num canto, sobre o gramado, estava quietinha, com o olhar voltado para meu quarto. Havia partido.
Partiu sem deixar de olhar para mim. Apertei-a forte, num abraço contra meu peito. Senti ainda o calor amoroso, guardado para mim, daquele corpo dourado. Até nesta despedida fomos solidários.
Destas coisas queridas, que nos são roubadas pela vida, Bela marcou sua presença em meu ser. Por certo, o terraço de nossa casa nunca mais será o mesmo.
Ei Bela, quanta falta você nos faz.
Guaraci Alvarenga é advogado (guaraci.alvarenga@yahoo.com.br)