Frequentador de cemitérios, várias vezes já me manifestei por este espaço, em relação à parte histórica de nossa necrópole central. Os túmulos de mármore branco hospedam os despojos da nobreza local. Os barões de Jundiaí, os condes de Parnaíba, outras figuras ilustres jazem perpetuamente. Foram esquecidos pelas famílias e também pelos que têm obrigação de preservar a memória jundiaiense.
Estátuas se quebram, também as lápides, o abandono é flagrante e triste. Com a “privatização” dos campos-santos paulistanos, a concessionária adotou um sistema inédito de geolocalização. A plataforma hospedada no site https://bit.Iy/4ekqoQo permite acesso a informações dos jazigos. A pesquisa é feita por nomes e propicia a localização das sepulturas em tempo real, inclusive com foto.
O projeto atende ao mais antigo cemitério paulistano, o de Santo Amaro e o do Araçá, o maior cemitério urbano da América Latina. Por enquanto, o sistema não chegou ao da Consolação, que tem o maior número de celebridades e é o mais visitado, inclusive com guia que explica onde estão as grandes figuras.
Para a implementação do plano, foi necessária a digitalização e processamento de dados de mais de trezentos e cinquenta mil documentos dos dois cemitérios. Foram consultados os livros cemiteriais, certidões de óbito e cartas de concessão. Demorou um ano.
Em seguida à localização documental, houve visita pessoal a cada quadra, para comparar se o levantamento digitalizado realmente conferia. O processo de geolocalização se estenderá pelos demais cemitérios da capital e deveria inspirar a administração local para fazer o mesmo no nosso mais antigo e, em seguida, para os demais: Parque dos Ipês e Nossa Senhora do Montenegro.
A cada vez que visito cemitérios – e tenho feito isso em outras cidades, como Paris, onde não deixo de entrar no Père Lachaise e no Montmartre – penso que a especulação imobiliária chegará um dia a pensar na ocupação dessas áreas tão valiosas, para ceder espaço à densificação urbana.
Parece uma tendência inevitável, que será acelerada à medida em que os rituais funerários forem cancelados, o que já se faz notar. No meu tempo de criança, Finados era um dia de meditação e de obrigatória visita ao lugar onde repousavam os familiares. Antecedido pela visita prévia na véspera, com o objetivo de lavar a sepultura, preparando-a para receber flores novas, numa homenagem sincera a quem nos antecedeu no encontro com o mistério.
Aos poucos, esse hábito foi minguando. Assim como também morreram as mães que iam zelar pelo jazigo de seus filhos pré-mortos. E a dimensão da família de sangue foi perdendo substância. Proles menores e já afeiçoadas a outros hábitos. Dentre os quais não está a periódica visita ao cemitério.
Incluo-me entre os que vão desleixando esse ritual. Sinto remorsos por mim e por outros. Estranho que as centenas de milhares de mortos na epidemia de covid não tenham sido alvo das praxes rituais para sepultamento e também que não se cumpriram os cânones do luto. Assimilar a morte, vivenciar o luto fazem parte da natureza humana. A supressão gera traumas permanentes.
A humanidade se embrutece quando esquece os seus mortos. Como se pudesse também esquecer que fará companhia a eles, mais dia, menos dia. Recuperar a arte funérea que se deteriora a cada dia, mostraria que os contemporâneos ainda respeitam sua lembrança. Mas quando é que isso acontecerá?
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e secretário-executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)
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