Acabo de ler “Olhe as luzes, meu amor”, da escritora francesa Annie Ernaux, que ganhou o Nobel de literatura em 2022. Ela escreve de forma autobiográfica, mesclando ensaios com memórias pessoais. Tudo isso, enquanto percorre supermercados franceses, principalmente o Aunchan, do shopping “Les Trois Fontaines”.
Isso me trouxe à memória como se adquiria alimentação e produtos de higiene há algumas décadas. Morávamos à rua 15 de Novembro e havia um armazém de secos e molhados na esquina da rua Dr. Torres Neves. Parece que pertencia à família Otero.
Ali meu pai fazia as compras mensais. A tarefa de abastecer o lar era masculina. Tinha de conversar com outros homens. Não ficava bem para as mulheres, cujo recato era obrigatório, sob pena de “ficar falada”.
Muitas vezes acompanhava meu pai. A operação levava horas. Perguntava quando fora colhido o feijão, de onde viera o arroz, quando chegara o bacalhau. Apalpava as batatas, as cebolas, o alho. Examinava os embutidos, principalmente salame, que não podia faltar.
Enquanto ele escolhia e se procedia à pesagem, à frente do freguês, de quando em vez o proprietário oferecia um pirulito ao menino. O pai experimentava o queijo, a mortadela, o presunto. E a conversa fluía. Todos conversavam entre si. Não havia a volúpia da pressa.
Compra feita, a entrega era feita com uma carroça puxada a burro. Poderia não ocorrer no mesmo dia. E havia também a “caderneta” onde se anotava alguma aquisição que escapava às compras do mês e que seria paga por ocasião da visita mensal do chefe da casa.
Armazéns maiores estavam na rua do Rosário. Felipozzi e Casa Aurora. Meu pai era amigo de Sérgio Paschoal (Sergio Giovanni Andrea Paschoal) e fez com que eu fosse trabalhar lá, no escritório, quando tinha entre treze e catorze anos. Sérgio e Vitória eram pessoas admiráveis. Polidas, educadas, lhanas. Nem todos os que trabalhavam na Casa Aurora estavam nesse padrão. Foi uma experiência que me ensinou muito: como tratar as pessoas, principalmente os subalternos.
Havia outro armazém, Marchiori, na esquina da Rangel com Siqueira de Morais. Tudo isso foi embora, com a chegada dos supermercados. Russi, Pão de Açúcar, Carrefour.
Desapareceram as relações pessoais, as “cadernetas”, tudo é automatizado e robotizado. Exatamente como Annie Ernaux fala em seu livro. Ela aborda a melancolia específica dos hipermercados, a expressão mais sedutora do poder do capitalismo neoliberal. Observa que o predomínio da pobreza sobre a riqueza faz com que o setor de superofertas ocupe uma área cinco vezes maior do que a reservada a produtos mais caros. Ela se recusa a fazer cartão de fidelidade, pois “não é fiel a ninguém”.
Frequentar supermercados dá uma sensação de acolhimento e pertencimento, “uma maneira de ser aceito no espetáculo da festa e mergulhar nas luzes da abundância”. Só se sente mal na seção de mercadorias muito caras. Pensa então: “eu não valho nada!”.
Hoje, faço compras no Santa Luzia, um lugar muito especial. Lembra o célebre “Fauchon”, de Paris, que infelizmente não existe mais com um prédio inteiro de produtos de todo o planeta. Restou uma pequena porta e a lembrança de quem o frequentou. Assim como as lembranças que tenho dos armazéns de nossa Jundiaí de antanho.
José Renato Nalini é Reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)