Essa semana, me deparei com algumas receitas em minha casa e que estava adiando para classificar e dar um destino pra aquilo tudo. Fui lendo o que eram e me deparei com uma riqueza de saberes e de impressionantes revelações de mulheres que trabalharam na cozinha de suas famílias por décadas.
Dessas estava o caderno da Mercedes, que me deu porque falou que não precisava mais daquilo, pois lhe disseram que tinham todas as receitas na internet. Eu, ingenuamente, acreditei, mas ainda assim aceitei as páginas escritas à mão e foi o revelador de uma rede de mulheres que trocavam receitas e comentavam seu passo a passo como: Adelaide Molina, as tias Julia Santina, Elisa e Aida.
As receitas revelam como era a vida nas cidades e no interior dessas casas que não trancavam as portas. Uma cidade em que cada casa era tudo: área de lazer, de trabalhar, de estudar, de produzir, de plantar e depois trabalhar o que colhiam e precisavam conservar.
As três primas mais idosas na cozinha, a Mercedes Segre que é Storani e Chechinato, a Terezinha e sua irmã Luiza Chechinato, são os pilares dessas cozinhas que identifico e que guardaram esse acervo de vida na cidade e na área rural. Produziram e produzem essas delícias até hoje, sobretudo a Luiza, que também é Luizinha e também Lula.
Mais intrigante foi ver a avó cortando o macarrão com a faca afiada em uma velocidade assustadora, e nós, netos mais novos, assistíamos assustados porque ela não tinha a ponta do polegar. Eu e a Beth (Elizabeth Ienne Mazzagardi), minha prima e contemporânea, achávamos que foi um erro da faca que levou o que faltava no polegar da avó.
Vou nas receitas de coisas deliciosas que fizeram, como a Torta Polonesa da Dona Adelaide Molina, ou a Comonal da Tia Julia, que ainda naquele caderno tem doces como a “Torta de Frutas Cristalizadas para Festas de Fim de Ano” escrita em uma folha que hoje encontra-se amarelada de tanta manteiga e trigo e tanto uso; o Bolo Inglês para o Natal, que era preparado com um mês de antecedência; Moreninha, Vienense, Meia Lua recheada, o Bolo de Araruta e o Rolinho de Canela, que era parecido com o jeito de cortar o macarrão. Ainda encontrei raridades como a receita da Cocada da Escola Industrial, da década de 1940, e mais receitas como a Forminhas recheadas da Terezinha, Quindão da dona Leta, também com a pagina marrom de tanto que foi usada, o Bolinho de chuva da Heloisa, o Bogonote da Lourdes, a Rosca de Natal e a Torta de Nozes da tia Santina, a Torta de goiabada alemã da Terezinha, o Rocambole gelado da Maria Emília e o Pão de Forma e Pão Doce da Tereza del Nero.
No caderno da Neide, minha irmã, tinha uma receita de bolo de rum da Dona Leta, receita disputada e guardada a sete chaves como segredo e as receitas da Caçarola Italiana e os pudins de laranja e queijo que eram famosos no Arroz, Feijão e Cia.
O legal desses cadernos é de onde vieram as receitas, revelando as amigas, as tias, as primas e as origens das delícias. As primas marcaram uma cozinha de excelência, como comprovam o caderno que tenho e as deliciosas receitas que eu tive o prazer de saborear e lembrar. E antes das minhas primas, minhas tias que fizeram o mesmo papel de passar na cozinha o maior tempo da vida delas.
A Neide e Nidia, que eram Pereira, mas Chechinato de mãe, fizeram dessas receitas um ritual de vida. A primeira, no Sesi, fez da cozinha uma das mais famosas da cidade, que tinha na Dona Antônia, filha de uma entidade, um monumento das comidas de tradição africana. Os bolinhos fritos, o cuscuz e outras coisas eram famosas e disputadas. A Neide sempre teve nela a maior admiração, e estendia isso na casa de Dona Antônia, que era uma família que sabia fazer e a gente ia ver e provar da cozinha que funcionava o tempo inteiro.
Nesses cadernos tem um banquete de coisas e memórias alinhadas de cada uma das que trocaram receitas e revelam práticas e ingredientes de um panorama de cultura que mistura origens europeias, brasileiras e contemporâneas.
Eduardo Carlos Pereira é arquiteto e urbanista (edupereiradesign@gmail.com)
Comentários
1 Comentários
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Eugenia gorini Esmeraldo 26/10/2024Que delícia de texto, Eduardo. Belo resgate e vc localiza as autoras com nome de família, o q dá ainda mais sabor !