Romance de Moacyr Scliar, “O centauro no jardim” é um livro muito estranho e ao mesmo tempo fascinante. A estranheza decorre do inusitado da situação: de uma família de humanos “normais”, o sujeito nasce centauro – metade homem, metade cavalo. A fascinação vem do enredo construído pelo romancista e por seu olhar a respeito de questões tão complexas quanto delicadas, como origem, pertencimento, motivações.
Leão e Rosa Tartakovsky são imigrantes judeus russos aportados no Rio Grande do Sul. Vivem numa gleba no distrito de Quatro Irmãos, no interior gaúcho. O casal já tem os filhos Rodrigo, Mina e Débora quando vem ao mundo o caçula Guedali, no ano de 1937. O pai, homem de fé, desconhece porque Deus castigou-o dessa maneira, entregando a ele um filho monstruoso. Já não bastavam as perseguições – os temíveis “pogroms” a que seu povo estava sujeito na Rússia czarista? Não bastavam as aldeias de judeus pobres incendiadas por cossacos violentos? Por que mais esse sofrimento?
Recuperada em parte do horror inicial, a mãe cuida com esmero da criança. Guedali é o narrador e principal personagem da história. Ele vive escondido na fazenda isolada, convive somente com sua família. Mas contratempos vão afastar os Tartakovsky do interior para a capital do estado, e a família chega a Porto Alegre. O centaurinho aprende a ler e torna-se um estudioso, um autodidata com os livros que o pai lhe compra. Livros e cursos por correspondência. O caçula cresce. Sua porção humana – tronco, braços e cabeça – revela-se bem torneada, bonita; sua porção equina – parte do corpo, patas e cascos – revela-se muito forte. Guedali quer trotar pelo mundo e sai de casa. Integra-se primeiro a um circo e faz sucesso – todo mundo queria ver o artista “fantasiado de centauro”, a galopar pelo picadeiro. Mas deixa a trupe – em cena tão cômica quanto trágica -- e continua sua jornada em busca de respostas. Seu destino seria galopar sempre sozinho? Até que o inesperado chega novamente: Guedali conhece Tita, uma linda centaura que fugia de um feroz perseguidor em fazenda quase deserta do interior. Ops! História com um só centauro não seria suficiente? Dois desses seres mitológicos não extrapola a conta? Mas é preciso embarcar nessa fantasia de Scliar e nela navegar para saber mais. Seu padrasto – um estancieiro mulherengo – vive com a mulher a quem maltrata. Mais reviravoltas no enredo e o casal de centauros está passando por período de relativa paz na fazenda dirigida agora pela mãe adotiva de Tita, dona Cotinha. Para a família em Porto Alegre, Guedali manda informações dizendo que “tudo vai bem”. O casal segue para o Marrocos – estamos no final dos anos 1950 --, onde um cirurgião famoso pode “resolver o problema” da dupla.
Mais sequências inesperadas numa trama bem urdida, dessas em que o leitor pergunta qual a substância consumida pelo roteirista para bolar um treco assim.
Moacyr Scliar nasceu no Rio Grande do Sul, em 1937 e morreu em 2011. Formou-se médico, clinicou e foi professor de Medicina. Publicou cerca de 70 títulos entre romances, ensaios e coletânea de contos.
Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)