A família dos dois veio de região em que os sonhos caem em areia movediça. A água chega pouco ou não chega. Alimentação escassa. As pessoas ficam sentadas, na porta das casas precárias, olhando além do horizonte vermelho, enquanto coçam o bicho do pé.
João Guimarães Rosa (1908-1967), em seu livro “Magma”, escreveu o poema “Alaranjado”: “No campo seco, a crepitar em brasas, / dançam as últimas chamas da queimada, / tão quente, que o sol pende no ocaso, / bicado pelos sanhaços das nuvens, / para cair, redondo e pesado, /como uma tangerina temporã madura…”
Sofrem pela falta de anúncios de dias melhores. Na distância alguém cantarola “Asa Branca” de Luiz Gonzaga: “Quando olhei a terra ardendo/ Qua fogueira de São João/ Eu perguntei a Deus do céu, uai/ Por que tamanha judiação./ Que braseiro, que fornaia/ Nem um pé de prantação/ Por farta d'água perdi meu gado/ Morreu de sede meu alazão”.
Foi pelo lado de cá que se conheceram. Não faltava água, contudo não havia, onde moravam, lugar para plantar e para o gado. Os desencantos da terra vermelha prosseguiram no pó de asfalto. Decidiram, pelo menos, viver uma história de amor.
Conheci-a quando o marido esteve detido. De sorriso com flores ao me ver, como se nos conhecêssemos há muito. Mulher batalhadora, plena de ternura. Na cidade grande, diversas coisas se misturaram: os degraus incontáveis do morro para chegar aos cômodos, os pequenos espaços na viela com venda de aguardente, os homens e as mulheres agoniados exalando álcool e, pouco tempo depois, chegou a droga ilícita e com ela situações a mais de violência. Os filhos se misturaram ao morro, sem balanços, escorregador, sem brincadeira de roda, pião, bolinha de gude... A maioria se sentiu atraído por aqueles que deixavam a escola, curtiam pancadão, desafiavam os adultos... Droga acessível para engolir momentaneamente as crises. Degradação do indivíduo. Ela e o marido aderiram a se anestesiar no álcool.
Dois filhos experimentaram o cárcere. Inúmeros conflitos.
Semana passada, enquanto ouvia o Evangelho de São Mateus (14, 22-36), sobre Pedro que anda sobre as águas e, no momento de falta de fé, afunda e grita: “Senhor, salva-me!”, recordou-se de um fato recente em sua vida. Ao chegar em casa com o marido, verificaram que o filho dormia e havia trocado todas as panelas por droga. Em um ímpeto de fúria, o homem pegou uma faca e foi em direção do moço. Ela, depressa, pegou a imagem desgastada de Nossa Senhora Aparecida, herança que a mãe lhe deixara, foi para a frente dele, ergueu a imagem e disse: “Não por mim, mas por ela, a Mãe Aparecida”. De imediato, o pai recuou.
A miséria lhes tirou quase tudo, porém herdaram a fé que lhes fortalece para buscar a força do bem. A fé salvou o filho de ser morto pelo pai e o pai de matar o filho. Possuem consciência de que é necessário buscar ajuda e que Deus mostrará o caminho.
Experiência forte de ação do Espírito Santo no coração dela e no ouvir dele.
No domingo passado, em sua homilia, o Padre Márcio Felipe de Souza Alves comentou sobre termos a sensibilidade para ouvir e nos abrirmos ao Espírito Santo, que nos convida a fugir do mal e envolve o nosso coração com a misericórdia de Deus. E que ninguém pode reter o que e com quem Ele agirá.
Acenos do Céu.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)
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