Praticamente oitenta por cento da população brasileira está nas cidades. O êxodo rural é um fenômeno complexo. A lavoura foi entregue a grandes proprietários, que são muito eficientes no agronegócio. Mas a agricultura familiar desaparece aos poucos.
Quem deixa o seu minifúndio, a chácara e o sítio – pois a vocação paulista é a de verdadeiras autarquias rurais – nem sempre se acostuma com a vida urbana. Muitos engrossam a periferia e vivem a adversidade de uma existência citadina muito distanciada do ingênuo existir no campo.
As cidades não são prejudiciais apenas ao que se viu expulso da zona rural. Elas também são responsáveis por pelo menos setenta por cento do efeito estufa. Por isso é que deve ser revisitado o antagonismo entre o ambiente urbano e a natureza.
O conceito de biourbanismo surgiu para isso. É um modelo de planejamento urbano centrado na natureza, que encara a cidade como um ecossistema complexo, resultante de conjugação de dez sistemas. A interconexão na cidade contempla a cidadania, a economia, a energia, a infraestrutura, a mobilidade, a tecnologia, a água, os resíduos, a paisagem e os alimentos.
Para melhor conhecer o conceito, é importante a leitura do livro “Biourbanismo: Cidades como Natureza”, escrito pelo australiano Adrian McGregor, fundador da McGregor Coxall, uma empresa de planejamento urbano, arquitetura e paisagismo, responsável por desenvolver novos estilos de cidades na China e no Oriente Médio. Ele também se encarrega de projetos de adaptação climática em Tóquio, Bristol e Sidney.
Para Adrian McGregor, “somos ensinados sobre a ecologia e os ecossistemas das florestas, desertos e tundras. Mas o que aconteceu no Antropoceno, que é a era do Homo Sapiens, é que impactamos os biomas selvagens ao redor do planeta e, de tal forma, que eles quase não existem mais da maneira como foram originalmente classificados”.
As cidades são natureza. Estão na troposfera e biosfera na Terra. É preciso entender como elas funcionam e trabalhar com essas funções. As cidades não precisam ser hostis aos humanos. Ao contrário, elas devem ser acolhedoras. Reservar a eles qualidade de vida. O que é possível em termos de felicidade humana.
Quem tiver juízo administrará uma cidade com outros olhos, já assimilada a compreensão de que ela é um ecossistema complexo. As cidades realmente saudáveis são aquelas que desfrutam de alta prosperidade e excelente saúde dos cidadãos. Para isso, é mister reparar as áreas que danificamos para fazê-la crescer. Às vezes – ou quase sempre – em nome de uma concepção equivocada de “progresso”, sacrificamos ambientes naturais muito mais valiosos do que a desenfreada ocupação imposta pela especulação imobiliária.
Hoje é possível criar planejamento e política pública benéfica à cidade. É factível criar gêmeos digitais, uma versão digital da cidade física, para a qual as simulações e análises orientarão as políticas públicas futuras. Com a utilização de informações climáticas do IPCC – Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, é possível saber qual será a temperatura da cidade no futuro, as precipitações pluviométricas e outros fatores específicos. Isso permitirá criar planos de resiliência climática, para salvar vidas. E como a temperatura só tende a aumentar, é urgente fazer “ilhas verdes”, de sombras, para competir com as “ilhas de calor”. Criar verdadeiros refúgios térmicos para a população que vier a sofrê-los. E bastará estar vivo para merecer a vingança de Gaia, a reação da Terra aos nossos indecentes e cruéis maus tratos.
José Renato Nalini é Reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)