As vítimas de ofensas raciais passam por intensa maratona, iniciando por convencer as autoridades que se trata de crime de cunho racial; segue-se a “bendita” produção de provas, como a que experimentamos diante da clássica perseguição em um supermercado, na qual a vítima percebendo que estava sendo vigiada, solicitou a uma pessoa que observasse a situação. Assim, ele iniciou sua busca pelos corredores sem foco, o que foi confirmado por ela (poderiam ter filmado, mas entenderam por observar). Pois bem: Na mesma semana procurou pelo setor de segurança a gravação das câmeras cuja resposta não foi outra senão a alegação de que o equipamento não estava funcionando !
Diante desse quadro restaria a proteção jurisdicional e, para isso, a produção da prova é fundamental. Ao procurar por aquela pessoa, sobreveio a estranha alegação de que não testemunharia por questão (espantosa) religiosa. A vítima, cidadão, honesto, trabalhador, sentindo-se humilhado sofreu mais um dano em seu íntimo, por primeiro ao confiar naquela que se lhe dizia amiga, em segundo pela estapafúrdia alegação de impedimento de ajudar na entrega da prova, em terceiro, pela distância da empatia, pois poderia ser o contrário, porque negra!
Não bastasse, a maratona, ainda que consiga levar o assunto a conhecimento do judiciário, no mais das vezes, sofreria outro constrangimento ao rediscutir o trauma, finalizando com eventual condenação da parte contrária em valor ínfimo que não alivia a dor experimentada.
Aqui vale lembrar o recente caso daquela enfermeira que fora humilhada em uma rede de farmácia da cidade de Bauru que, ao buscar indenização no valor de 50 mil reais, o judiciário entendeu que 15 mil seria o suficiente. Como assim? O valor buscado não a enriqueceria e não levaria a rede à falência ou algo parecido e, o que é pior, não a inibe de repetir a ofensa!
Como já dissemos contamos com potente arsenal jurídico, faltando sim aplicação efetiva e exemplar, no mais das vezes pela ausência absoluta da empatia e distanciamento da realidade experimentada pelas pessoas e, só encontram respostas mais rápidas e de alto valor quando eles são as vítimas, lembrando da frase de um desembargador jundiaiense, que ao tratar das posturas de alguns magistrados que se entendem acima de tudo e de todos, disse ele que: “há juízes que não andam . . . flutuam” e arrematou dizendo que: “alguns só falam com Deus quando ele (Deus) precisa de conselho”. Parece brincadeira né?
Sabendo também disso, o Conselho Nacional de Justiça baixou a Resolução de n. 192/2014 visando formação e aperfeiçoamento dos servidores do Poder Judiciário, em especial no trato aos destinatários dos serviços, não se exigindo esforço algum de que, se o tratamento fosse diferente não haveria necessidade de criar dispositivos regulando as práticas e entrega dos serviços com mais respeito e dignidade ao cidadão!
Nessa mesma linha, o referido Conselho baixou a Resolução 492/2023, instituindo a obrigatoriedade da formação continuada e capacitação de magistrados e magistradas em direitos humanos, gênero, raça e etnia.
Como dito linhas atrás, se a entrega da prestação jurisdicional atendesse a esses requisitos não haveria necessidade da criação de qualquer norma obrigando a formação nos temas confirmando a distância dessa realidade.
Assim, após a formação em gênero, raça etnia essas “autoridades” poderão produzir resultados efetivos e de proteção à sociedade como um todo, sem perder de vista a franca e urgente necessidade de afastar material didático-pedagógico eurocêntrico e com base em filosofia ultrapassada, da qual tomo a liberdade de reproduzir pensamento do festejado Montesquieu, em sua obra O Espírito das Leis: “...Não nos podemos convencer que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, principalmente uma alma boa, num corpo todo preto [...] É impossível que suponhamos que estas pessoas sejam homens, porque se supuséssemos que eles fossem homens, começaríamos a crer que nós mesmos não somos cristãos. (1996, p. 257) “.
Eginaldo Honorio é advogado, doutor Honoris Causa e conselheiro estadual da OAB/SP (eginaldo.honorio@gmail.com)