OPINIÃO

Na colheita dos dias


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Os dias são feitos também de fatos e acontecimentos novos, além do cotidiano. Os que mais me impactam traduzo em palavras. Em muitas delas recordo fala de Clarice Lispector: “As palavras vêm de lugares tão distantes dentro de mim que parecem ter sido pensadas por desconhecidos, e não por mim mesma”.

Semana passada lembrei-me da colocação forte de uma moça, por anos habitou o submundo, que o dinheiro vindo do ilícito e do uso consentido da pessoa escorre pelos dedos das mãos. Há um tempo em que sua fonte se esgota e restam cacos da mistura entre sonhos e ambição. Alguns, nesses momentos, tornam-se retirantes de sua vida e outros transbordam álcool no balcão encardido de um bar.

Lembram-me “Vida e Morte Severina de João Cabral de Mello Neto: “- Severino retirante, deixe agora que lhe diga:/eu não sei bem a resposta/ da pergunta que fazia, / se não vale mais saltar/ fora da ponte e da vida;/nem conheço essa resposta,/ se quer mesmo que lhe diga;/ é difícil defender, /só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é/ esta que vê, severina;/ mas se responder não pude/ à pergunta que fazia,/ ela, a vida, a respondeu/ com sua presença viva./ E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida...”

Falta a coragem para uma experiência da Cruz, onde as dores encontram sentido e é possível buscar o renascer. Entristeço-me tanto ao não conseguir indicar o caminho do Calvário! É de lá que vem o perdão de minhas quedas e a ressurreição.

O Cardeal e poeta português José Tolentino de Mendonça escreveu recentemente: “E às vezes, na nossa vidas, nós pedimos a Deus: ‘Senhor, arranca-me o espinho! Senhor, tira-me esta dificuldade! E Deus normalmente não resolve assim, mas ajuda-nos a fazer um caminho de confiança: ‘Basta-te a minha Graça’. Nós temos de aprender esta fraqueza, a abraçar a fraqueza, e nós não aprendemos isso senão no alto da cruz”.

Algumas atitudes, contudo, vêm de uma infância desprotegida. A psicóloga Ana Cristina Codarin Rodrigues costuma me repetir sobre o que dizem: “A infância é um chão que se pisa a vida inteira”. Essencial, portanto, olhar e atuar junto a crianças e adolescentes desprotegidos.

Há pequeninos e pequeninas envoltos em álcool ou outros tipos de drogas do seu entorno. Há meninos e meninas, considerados “salvos” por parentes, sendo que um dos integrantes irá acariciar as suas partes íntimas e ela ou ele não terão coragem de denunciar pelo medo da ameaça. Há gente miúda que carrega transtornos que demoram para ser identificados ou não são identificados e ouvem palavras ríspidas e/ ou apanham. Há bebê que “mama” no cordão umbilical por onde passam vários tipos de drogas e desperta no mundo carregando “assombrações” adquiridas em histórias de terceiros. Se não nos dedicarmos a salvar, pisarão uma vida inteira no chão de sua infância.

Fixo-me no convite do Padre Márcio Felipe de Souza Alves, Reitor do Santuário Diocesano Santa Rita de Cássia, no último domingo, para anunciarmos a presença de Deus que nos levanta, como aconteceu com o Profeta Ezequiel (2, 2-5): “Naqueles dias, depois de me ter falado, entrou em mim um espírito que me pôs de pé”. E Ezequiel anunciou o Senhor a fim de que pelo menos soubessem que houve entre eles um profeta.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

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